Covid-19
Num mundo aberto, sem fronteiras que nos aprisionem, limitem, com aviões e comboios e carros que nos estendem os horizontes, com apertos de mão e beijos e ajuntamentos e liberdade de nos associarmos e juntarmos e sermos juntos, uma epidemia como esta, que nos recomenda isolamento, não pode senão assustar, fazer-nos regressar à condição humana, frágil, vencível.
E nestes momentos em que nos recolhemos em casa, em que corremos para agarrar produtos que julgamos necessários, em que rezamos e esperamos que tudo possa melhorar, que tudo não passe de um intervalo, de uma suspensão, há como que uma nostalgia que se instala, um antes é que era bom, um sentimento de culpa que alguns nos querem impor, a tal conversa de tudo isto ser culpa do capitalismo ou do hedonismo ou da depravação ou do consumismo ou de qualquer outro culpado que se aclimate bem à tese política ou ideológica em causa.
É como se os nossos dias, os imediatamente anteriores a estes, em que dançávamos e beijávamos e viajávamos e abraçávamos e consumíamos e esperávamos o passar despreocupado do tempo, fossem dias de pecado, de trevas, de transgressão - uma espécie de atrevimento, um atrevimento tão grande que não poderia senão merecer a resposta da natureza ou da ordem ou do clima ou de Deus ou do sistema ou do que for.
Como se tudo isto fosse novo, inédito, e não é. E como se de todas as outras vezes não tivesse sido pior, sem televisões para alertar, meios para acionar, redes sociais para nos sabermos bem, para nos aconselharmos e vigiarmos, sistemas de saúde com defeitos mas que existem e têm heróis. E há desinformação e boatos, claro que há, como sempre houve e piores sem que houvesse quem conseguisse desmenti-los. E como se não tivéssemos, graças aos dias imediatamente anteriores a estes e ao que neles conseguimos, logrado evitar muitas mais epidemias, curar o que era incurável, descobrir formas de viver mais e melhor, chegar à idade adulta sem perder irmãos, chegar à idade adulta com avós de quem cuidar.
Este enorme desafio que temos pela frente, que nos provoca e testa, que nos compromete e solidariza, será grave, será terrível, obriga-nos a trabalhar muito e depressa, mas não será nenhum sinal de degenerescência ou castigo. Far-nos-á pensar e relativizar, encontrar outras formas de olhar para nós e para os outros, exigindo que reaprendamos ou recordemos uma data de coisas, mas nada disso pode colocar em causa o que, como sociedade, nos últimos dois séculos, fomos construindo.
O mundo é um lugar terrível, mas foi sempre mais terrível do que é hoje. Aceitar que nos digam o contrário, depois de termos vencido tanta coisa, depois de termos combatido tanta pobreza, tanto autoritarismo, tanta discriminação, tanta violação de igualdades e liberdades, é uma provocação que não podemos aceitar. Venceremos isto, não porque nos arrependemos, mas porque temos vencido os vários desafios que nos apareceram. E não queremos voltar para trás.
Advogado