Lenda viva do jazz
Por vários motivos, entre os quais o amor pela Europa, tenho-me mantido longe de Nova Iorque há anos. Mas se estivesse atento ao movimento musical por lá, havia um pretexto insuperável para ter voltado à cidade há algumas semanas. Em meados de novembro, no Blue Note, clube de jazz no Greenwich Village, apresentou-se, aos 93 anos, o baterista Roy Haynes.
Todo fã de jazz tem um particular fascínio pelos bateristas. Se o contrabaixo é o coração de uma formação jazzística, os pratos e os tambores da bateria são os pulmões que a fazem respirar - e a bateria tem ainda o seu coraçãozinho particular, que é o bumbo. Por isso, desde o primeiro baterista a ficar famoso, Tony Sbarbaro, da Original Dixieland Jazz Band, em 1917, seguiu-se pelas décadas seguintes uma multidão de outros, todos eles ídolos em seu tempo: Baby Dodds, Zutty Singleton, Dave Tough, Sonny Greer, Chick Webb, Gene Krupa, Buddy Rich. Pois, pouco depois daquela época, em meados dos anos 1940, Roy Haynes já estava na praça.
Vieram os bateristas mestres do bebop, Kenny Clarke, Max Roach e Art Blakey, e, mesmo diante dessa concorrência, Haynes continuou solicitado. Surgiram bateristas heterodoxos, que tiveram seu momento, como Shelly Manne, Louis Bellson e Joe Morello, mas Haynes nunca se queixou de falta de trabalho. Haynes sobreviveu até àquela superleva de bateristas modernos dos anos 1950 e 1960, associados a Miles Davis, composta de Philly Joe Jones, Jimmy Cobb e Tony Williams, e aos muitos que apareceram depois, ligados ao afro-cubano, à bossa-nova, à fusion jazz-rock e a outros ritmos difíceis de classificar. Roy Haynes adaptou-se a todos os estilos, sem perder o seu, e chegou até aos nossos dias, invicto, de baquetas nas mãos.
De certa forma, só a sua sobrevivência física já parece um milagre. Os jazzistas da sua geração, vítimas de várias mazelas - pobreza, racismo, tuberculose, álcool, heroína -, tendiam a morrer cedo, como o saxofonista Charlie Parker, aos 34 anos, o trompetista Fats Navarro, aos 27, o guitarrista Charlie Christian, aos 23, e muitos mais. Haynes, negro e de origem pobre, como a maioria deles, não apenas passou por aquilo tudo e escapou como venceu os séculos com a maior classe. Os grandes fabricantes de baterias, como a Yamaha, a Zildjian e a Ludwig, criaram peças especialmente para ele e o tiveram por muito tempo como garoto-propaganda. E, por falar em classe, ele levou anos sendo eleito pela revista Esquire como um dos homens mais elegantes da América.
Mas se eu tivesse ido a Nova Iorque por causa de Roy Haynes, seria por outro motivo. Com toda a probabilidade, ele é, hoje, o único jazzista vivo que pode se orgulhar de já ter trabalhado com os mestres de todos os estilos executados na história do jazz. Senão, vejamos.
Nascido em 1926, em Boston, um dos seus primeiros trabalhos foi em 1945, aos 19 anos, com a orquestra do pianista Luis Russell - este, um graduado da orquestra de King Oliver em Chicago, em 1925, e arranjador e líder de uma orquestra estrelada por Louis Armstrong, em Nova Iorque, em 1929. Ou seja, Haynes começou com um homem que já estava lá quando o jazz estava começando. Em seguida, Haynes fez parte do conjunto que, de 1947 a 1949, acompanhou o saxofonista Lester Young. Todas as noites, no fundo do palquinho, ele ficava a menos de dois metros do génio sublime do sax-tenor, que, de costas para ele, sentado numa cadeira, tocava e fumava ao mesmo tempo.
Com o bebop já dominante na cena musical, Haynes passou os anos seguintes apresentando-se com Kai Winding, Bud Powell, Miles Davis, Charlie Parker, Thelonious Monk, Lee Konitz - todo o catálogo da categoria -, justamente quando eles estavam estabelecendo suas inovações. Em 1953, Haynes tornou-se acompanhante de Sarah Vaughan em sua maior fase e com quem ficou até 1958. Nesse ano, passou-se para o conjunto que sustentava o revolucionário trio vocal Lambert, Hendricks & Ross, no que deve ter sido o maior desafio de sua carreira - acompanhar três cantores que, juntos ou separados, faziam dezenas de vozes, usando um recurso então novo, o playback - vide aquele incrível álbum, Sing a Song of Basie.
Outros com quem Haynes trabalhou na sequência foram os pianistas George Shearing e Lennie Tristano, e um não podia ser mais diferente do que o outro - Shearing, doce e comunicativo; Tristano, amargo e introspetivo -, e com a turma da Costa Oeste: Stan Getz, Gerry Mulligan, Art Pepper. Até aí, tudo bem. Mas o que o terá feito encarar durante anos os colossais Eric Dolphy, John Coltrane e Sonny Rollins, quando eles estavam demolindo a música com seus saxofones? Pode ter sido uma preparação para o que Haynes enfrentaria depois: o jazz dos anos 1970, mais difícil ainda de entender, com jovens como Chick Corea, Archie Shepp, Jack DeJohnette e Alice Coltrane. Haynes, já veterano, foi chamado a tocar com todos eles e, fechando o gigantesco arco, apresentou-se, pasme, com os Allman Brothers e com outros roqueiros. E sabe quem se declarou seu fã? Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones. Ou seja, Haynes foi quase que do ragtime ao rock em sua carreira.
É este o homem que, com quase um século de vida, ainda faz música com as baquetas e as escovinhas, nas noites de Nova Iorque. É uma testemunha viva da música de dois séculos e um de seus mais ilustres praticantes.
Se eu tivesse ido ao Blue Note naquela semana, tentaria falar com Haynes depois do concerto. Mas talvez não lhe fizesse a pergunta óbvia: "Como o senhor se sente na condição de uma lenda viva do jazz?"
Ele poderia responder: "Não tenho culpa se as outras lendas morreram!"
Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta da China).