As vidas atrás dos espelhos
Mais do que qualquer apetite científico ou do que qualquer desejo de mergulho académico, o prazer dos documentários biográficos vai-me servindo sobretudo para aconchegar a curiosidade e a vontade de descobrir novos pormenores sobre os visados, até para poder ligar pontas que, antes dessas abordagens, pareciam soltas e desligadas. No domínio das artes, essas motivações crescem exponencialmente, até por permitirem descobrir, nas vidas, circunstâncias e contextos que ganham reflexo nas obras. Como estas coisas valem mais quando vão aparecendo naturalmente, acontecem-me por revoadas. A presente pôs-me a ver três poderosos documentos sobre gente do cinema, em que nem sempre o "valor facial" retrata o real.
Vamos por partes, começando pelo mais inesperado: Bombshell - The Hedy Lamarr Story , uma abordagem ao percurso da atriz nascida na Áustria (1914--2000) e que ganhou popularidade nos Estados Unidos. A realizadora, Alexandra Dean, parte das cassetes áudio, milagrosamente reencontradas pelo interlocutor da inesquecível Dalila, de Cecil B. DeMille, para lhe fazer justiça, muitos anos depois da sua morte e quase seis décadas da sua última presença num filme. Ficamos a saber que, frivolidades, casamentos e carreira "oficial" à parte (e Lamarr nunca chegou ao estatuto misterioso de divas como Greta Garbo ou Marlene Dietrich, também porque o seu "patrão", Louis B. Mayer, o chefão da Metro, nunca apostou verdadeiramente nela), Hedy foi - em contracorrente com o autoritário domínio dos estúdios - uma produtora e financiadora de filmes, numa época em que nem os seus parceiros masculinos se atreviam a tanto.
Há uma surpresa ainda maior: a dedicação da mulher que foi acolhida e imediatamente proscrita por causa de uma cena de nudez num filme europeu (tinha 19 anos...) sugestivamente intitulado Êxtase, às invenções. Os poderes político e militar norte-americanos, que a utilizaram como chamariz na angariação de fundos para financiar o esforço económico na Segunda Guerra Mundial, nunca reconheceram - nem remuneraram - uma criação (hoje dir-se-ia aplicação...) de Miss Lamarr que impedia o desvio pelo inimigo da trajetória dos torpedos. O documentário não poupa a atriz, cujo rosto inspirou a Branca de Neve, de Walt Disney, e a Catwoman da banda desenhada, nos desvarios e excessos de um envelhecimento solitário. Mas lança uma luz, que obriga a pensar, sobre o disparate que, ao menos neste caso, foi olhar-se para esta senhora apenas como a feliz proprietária de uma "cara bonita". Acontece muito mais do que se imagina.
Em The Eyes of Orson Welles , o realizador e argumentista irlandês Mark Cousins, com mais de duas dezenas de trabalhos dirigidos, também parte de uma situação privilegiada, quando lhe é concedido acesso a um "baú" do espólio do cineasta, ator e intelectual (1915-1985). Em pormenor, é-nos facultado o mergulho em mais uma das paixões de Orson Welles, a juntar ao cinema, ao teatro, à magia e à rádio: o desenho. Tornam-se óbvias as rigorosas planificações prévias que o artista foi produzindo para utilizar nos filmes, com pormenores deliciosos quanto à iluminação, ao guarda-roupa, aos ângulos escolhidos para a câmara. Cousins vai mais longe: recupera as obsessões e os amores de Welles, traçando sempre um paralelo entre episódios (e pessoas) da sua vida e aquilo que foi somando para um incontornável legado universal.
Este trabalho - que vai estrear numa sala de cinema portuguesa, a 20 de dezembro próximo - arrisca uma tese muito curiosa: a de que alguns dos combates e convicções de Orson Welles foram apenas premonitórios face ao que hoje estamos a viver, à escala norte-americana e internacional. Nem Donald Trump fica de fora, no enredo magistral de Cousins, que pretende passar todo o tempo a interpelar o gigante de O Mundo a Seus Pés e de A Dama de Xangai. E este acaba por lhe "responder" (pela voz de um ator), contrapondo os seus próprios pontos de vista.
Para fechar, o mais impressionante e revelador - Filmworker , de Tony Zierra. Na capa do DVD, há uma foto a preto e branco, com Stanley Kubrick (1928-1999) em primeiro plano. Lá atrás, um rosto vagamente familiar, o de Leon Vitali, ator de formação shakespeariana.
Claro que temos direito à cruzada de manias, à descrição das fúrias despóticas, aos momentos de ternura, ao perfeccionismo do realizador. Mas Zierra opta pelo "dois em um", chegando a Kubrick através do homem que lhe serviu de sombra, de assistente para todo o serviço, de confidente, de empregado, durante quase um quarto de século. A história começa com Vitali a assistir a 2001 - Odisseia no Espaço e a concluir que nunca tinha visto um filme tão bom. A seguir a vibrar com o estilo de representação de Laranja Mecânica e a querer chegar-se mais perto. Depois, a conseguir um papel de destaque em Barry Lyndon, capaz de mudar tudo: porque Leon Vitali praticamente abdicou de ter uma vida e rejeitou um percurso próprio para se deixar iluminar - e subjugar, objetivamente - pelo "farol" Kubrick. Foi diretor de elenco, responsável por efeitos sonoros, planificador, empregado da limpeza, secretário, representante do realizador, tudo, literalmente tudo. Seguiu-o até à conclusão de De Olhos Bem Fechados - até à morte de Kubrick, que muitas vezes não respeitava nem reconhecia a importância vital de Vitali.
Chegou a ser Leon, o responsável pela elaboração de diferentes trailers para países distintos, interessados em ver ou rever os filmes do mestre. Foi ele que assumiu o controlo de qualidade das novas cópias das velhas obras e da transposição para vídeo e para DVD. Coube-lhe ainda "descodificar", de uma forma impossível para outrem, a obra de Kubrick. Hoje com 70 anos, Leon Vitali continua a trabalhar - em muitas ocasiões sem qualquer remuneração - em múltiplos aspetos do legado do cineasta. Impressiona, esta disponibilidade para a anulação de um indivíduo em função de outro, e de uma maneira tão perene.
São três ensaios humanos que nos permitem passar para o lado de lá do espelho. E são três viagens de volta em que já não temos a certeza de ser o que éramos antes do tiro de partida.