Lembram-se do Brexit? Pois é, parece que andámos exaustivamente a discuti-lo há coisa de dez anos, tal está a ser 2020, mas vale a pena voltarmos a ele à entrada de duas semanas de intensa pressão na Europa. Três fatores estão a contribuir para isso: a expectativa de que o Conselho Europeu de quinta-feira aprove o programa financeiro da Comissão com vista à recuperação europeia pós-covid; o final do prazo para uma eventual extensão do período de transição do Brexit para lá do final deste ano; a pressa que a Alemanha tem de ver estas e outras questões alinhadas antes do início da presidência rotativa da União Europeia (UE), a 1 de julho. No meio da maior contração económica no pós-Guerra, vale a pena olharmos para tudo isto com algum pormenor..Já aqui elogiei os acertos rápidos da UE depois de uma entrada absolutamente errática na gestão da pandemia. A dimensão da crise nas principais economias do euro e uma alteração importante na posição alemã acabaram por ditar um roteiro inédito, quer nos montantes disponibilizados pelas instituições quer na aceleração das decisões. Mas como o ceticismo analítico continua a ser um bom conselheiro, é bom lembrar que estamos ainda no plano das propostas e que para chegarmos às aprovações alguns dos irredutíveis vão ter de mudar de posição a troco de alguma coisa..Nos últimos dias, percebemos que a Dinamarca flexibilizou a sua postura negocial, podendo eventualmente arrastar a Suécia consigo, até pelo desastre levantado pela gestão alternativa da covid. Sabemos que a Áustria alinha habitualmente com a Alemanha, mesmo que a juventude do seu chanceler obrigue a alguma demarcação conjuntural. E que os holandeses já sinalizaram não haver pressa, apostando tudo numa posição de isolamento para liderar uma barricada ideológica vista simultaneamente como alternativa ao eixo franco-alemão e como ocupante de um espaço a norte de influência pós-Brexit. Já a Hungria, que começou por rejeitar o plano Von der Leyen por considerar que favorecia as economias mais ricas, admitiu entretanto aprová-lo após reunir o grupo de Visegrado. A Polónia, um dos maiores beneficiados do plano de recuperação, terá certamente ditado o resultado final da posição dos quatro, embora seja expectável que Orbán tente trazer de Bruxelas mais qualquer coisa que satisfaça a sua agenda interna..Apesar destas evoluções, dificilmente este próximo Conselho Europeu será conclusivo como muitos europeus esperariam. Há dias, em entrevista ao La Repubblica, Lars Feld, o principal conselheiro económico de Merkel, apontava já a presidência alemã como o tempo da aprovação dos pormenores, o que abre a hipótese de um Conselho Europeu extraordinário em julho. Aí será não só importante definir todos os condicionalismos associados aos subsídios e aos empréstimos, como também os calendários em que os fundos chegarão às economias mais atingidas pela covid..As teses mais pessimistas, como um estudo recente do Bruegel, apontam apenas 2023 como o ano em que três quartos das verbas chegarão aos Estados membros. Já a Comissão aponta 2022 como alvo de 60% das mesmas. É tarde, muito tarde. Pode, aliás, ser fatal para Estados membros como Portugal, cujas recuperação económica, criação de emprego e coesão social estão praticamente dependentes das soluções e dos calendários da UE. O próximo Conselho Europeu pode não ser definitivo numa série de detalhes, mas precisa de emitir um sinal claro sobre a rapidez dos apoios, caso contrário volta a quebrar-se a confiança reconquistada no último mês. Portugal só tem a ganhar se for portador, à saída da reunião, da mensagem certa..Vamos ao Brexit? Os negociadores da UE e do Reino Unido reuniram-se quatro vezes desde março, quando a pandemia se impôs na política internacional. Destes encontros pouco ou nada resultou. O período de transição chegou a meio e praticamente nada avançou. O acordo comercial está parado, os pormenores sobre a gestão da questão fronteiriça entre as Irlandas também, e o espectro de um hard Brexit regressou aos cálculos das associações empresariais e industriais britânicas, bem como dos Estados membros na linha da frente do comércio bilateral, como a Holanda e a Bélgica, cujo alarme vai provavelmente levá-los a debater o tema no Conselho Europeu..Perante isto, Londres tem até ao final de junho para solicitar uma extensão do período de transição, mas Boris Johnson não dá sinais de querer fazê-lo. A má gestão da pandemia tem levado os conservadores a uma queda abrupta nas sondagens (apenas mais 6%) e a mudança na liderança trabalhista trouxe outro acerto à oposição, mas nem isso fez que a posição britânica assumisse uma especial sensatez..No atual contexto, diferente do que levou Johnson a jurar nunca requisitar prolongamentos de prazos a Bruxelas (campanha para as legislativas em dezembro de 2019 e dia do Brexit, a 31 de janeiro de 2020), faria todo o sentido assumir que mais um ano de negociações contribuiria para um bom acordo, sem que o primeiro-ministro delapidasse a confortável maioria nos Comuns. Precipitar tudo entre um mau acordo ou uma saída desordenada no meio de uma recessão profunda é apenas teimosia cega para faccioso desfrutar. Portugal, concentrado que está na pandemia e nas soluções da UE, não deve descurar todos os bons ofícios diplomáticos que dispõe para levar o Brexit ao porto mais seguro possível. Infelizmente, continua a não estar no bom caminho..A presidência alemã da UE vai ser obrigada a lidar com tudo isto. Sejam os detalhes das negociações financeiras entre os 27, a gestão do menos mau dos rumos do Brexit, a relação com a China, cuja importante cimeira marcada para setembro foi entretanto adiada para não dar azo a divisões europeias e intromissões de Trump em plena campanha para as presidenciais e, claro, essa gestão sensível sobre o bullying que a administração americana tem feito sobre aliados, em particular sobre Berlim - como se viu pelo anúncio unilateral de retirada de tropas americanas da Alemanha -, com Merkel na expectativa de que novembro traga uma mudança na Casa Branca que lhe permita acabar 16 anos na chancelaria da melhor forma possível..Entretanto, a pandemia acelerou a necessidade tecnológica de dotar as economias de redes 5G seguras e sustentáveis, o que reacende a questão da competitividade chinesa no seu fornecimento e o alarme sobre a insegurança provocada. Este é um debate central nas divisões euro-atlânticas, esteja Trump ou não na presidência, e será mais um foco de pressão na presidência alemã. Mas não é um fatalismo. No Canadá, as maiores operadoras de comunicação fecharam acordo com a Ericsson e a Nokia para a rede de 5G, mostrando que há um mercado transatlântico a funcionar, capaz de ser competitivo e oferecer segurança aos governos e aos cidadãos..O resultado da gestão política alemã nestas várias frentes ditará o sucesso da presidência portuguesa no semestre seguinte. Lisboa tem por isso de seguir diariamente o que se passa em Berlim. Infelizmente, não temos essa tradição..Investigador universitário