Um mundo antes e outro depois de João Gilberto

O cantor da bossa nova, morto no Rio no sábado último, influenciou até pessoas que nunca ouviram falar dele.
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Na noite de 21 de novembro de 1962, o Carnegie Hall, em Nova Iorque, recebeu um grupo de espectadores mais habituados a ocupar seu palco do que seus camarotes. Eram grandes nomes da música popular americana e do jazz, que tinham ido até lá para ouvir um artista brasileiro chamado João Gilberto.

Entre eles, estavam os cantores Tony Bennett e Peggy Lee, os trompetistas Dizzy Gillespie e Miles Davis, o saxofonista Gerry Mulligan, os pianistas Bill Evans e Erroll Garner, o flautista Herbie Mann. Todos, universalmente reconhecidos como os mais importantes em seus instrumentos. E estavam ali porque tinham ouvido falar de João Gilberto por colegas que haviam tocado há pouco no Rio e conhecido o cantor brasileiro: as cantoras Lena Horne e Chris Connor, os saxofonistas Coleman Hawkins e Zoot Sims, os trompetistas Roy Eldridge e Kenny Dorham, o baterista Jo Jones e os membros do Modern Jazz Quartet.

O concerto daquela noite no Carnegie Hall era, nominalmente, de bossa nova - o ritmo recém-criado no Rio e que, justamente naqueles meses, produzira um megassucesso no hit parade dos Estados Unidos: o LP Jazz Samba, interpretado por Charlie Byrd e pelo saxofonista Stan Getz, contendo a gravação de Desafinado (off key) que liderou as listas de singles mais vendidos. A causa dessa comoção, que explicava o estouro de Desafinado e tornou o concerto no Carnegie Hall um acontecimento, era João Gilberto. Como se dera isto?

Em fins de 1961, Byrd, recém-chegado do Rio, onde se apresentara, mostrara a Creed Taylor, diretor da gravadora Verve, os três primeiros álbuns de João Gilberto, que ele trouxera na mala. Disse-lhe que gostaria de gravar um disco com aquele repertório e tentando emular o ritmo do violão de João Gilberto. Taylor ouviu os discos e gostou da ideia, mas propôs-lhe incluir Stan Getz no projeto. A carreira de Getz, depois de um começo brilhante, estava estagnada havia anos por seu envolvimento com álcool e drogas. Para Taylor, preocupado com Getz, um disco como aquele poderia trazer de volta o público do saxofonista.

Byrd não se opôs, e o disco foi feito. O álbum Jazz Samba - contendo Desafinado, O Pato, Samba de Uma Nota só, É Luxo e Manhã de Carnaval, todas do repertório de João Gilberto - foi gravado por Byrd e Getz em Washington, no dia 13 de fevereiro de 1962. Lançado em abril, chegou ao hit parade da revista Billboard em setembro, e nele ficou durante 70 semanas - várias delas em 1.º lugar, marca que nenhum disco de jazz atingira ou voltaria a atingir. Até que...
Com a explosão de Jazz Samba, e sabendo que João Gilberto permaneceria em Nova Iorque depois do concerto no Carnegie Hall, Creed Taylor decidiu que o reuniria a Stan Getz num disco. E este foi gravado nos dias 18 e 19 de março de 1963, em Nova Iorque, com a participação de António Carlos Jobim ao piano, Tião Neto (sem crédito) ao contrabaixo, e Milton Banana à bateria. No estúdio, em meio à gravação, surgiu a ideia de que, em duas faixas (Garota de Ipanema e Corcovado), a esposa de João Gilberto, Astrud, faria uma participação, cantando em inglês.

O disco, que se chamou Getz/Gilberto, foi lançado em março de 1964 e entrou na lista da Billboard em junho, na qual ficou - pode crer - por 96 semanas, muitas delas em 2.º lugar. Só não chegou ao 1.º porque, naquele ano, os Beatles monopolizaram a primeira posição com um sucesso atrás do outro. Com o dinheiro de Getz/Gilberto, Stan Getz comprou uma mansão de 23 quartos em Irvington, no estado de Nova Iorque, que pertencera a Frances Gershwin, irmã de George Gershwin. E teve de mandar fazer uma estante para acomodar os Grammys que Getz/Gilberto ganhou.

Muito por causa de João Gilberto, os músicos e cantores americanos se apaixonaram pela bossa nova e a incorporaram ao seu repertório, concentrando-se, claro, no repertório de Jobim - que tinham aprendido com João Gilberto. É impossível citar todos os artistas que, somente naqueles primeiros anos, gravaram bossa nova. Apenas entre os monstros sagrados, eis alguns: os jazzistas Miles Davis, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Stan Kenton, Wes Montgomery, Dave Brubeck, Coleman Hawkins, Bud Shank, os cantores Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Tony Bennett, Peggy Lee, Doris Day, Blossom Dearie, Mel Tormé, Eydie Gormé; o superconjunto vocal The Hi-Lo's - e como se chamava mesmo aquele rapaz? Ah, sim - Frank Sinatra. (E porque não? Até Elvis Presley gravou bossa nova!) Também impressionante é o facto de que dois compositores americanos dos anos 1960, ambos com estilo próprio e já partindo para um sucesso planetário, usaram a batida do violão de João Gilberto, transposta para a bateria, em sua fórmula rítmica: Henry Mancini e Burt Bacharach.



A influência daquela batida nunca parou - até hoje. Ela foi incorporada à gramática da música popular internacional e pode ser escutada nos teclados dos aprendizes, nos arquivos musicais e nos programas de computador. Está em toda parte e é usada até por quem nunca ouviu falar de João Gilberto. Quanto não deveria valer isto em dinheiro?

Às vezes me pergunto se, um dia, João Gilberto imaginou que aquele tipo de música que ele estava criando num estúdio de gravação no Rio, em 1958, seria capaz de sustentá-lo a ouro e a mel pelo resto da vida. Acho que não - nem em delírio ele poderia imaginar tal coisa. Mas, pelo que se veria dali a pouco, isso poderia ter acontecido. Se, desde então, João Gilberto tivesse recebido 0,0001 centavo de royalties, em qualquer moeda, todas as vezes em que, em alguma parte do mundo, alguém se aproveitou de sua batida de violão ao gravar um disco ou se apresentar em público, não haveria como medir seu património.
Como isto não aconteceu, restou lhe a glória de - com o que os seus dedos ensinaram às cordas do seu violão - ter marcado a ferro esse mesmo mundo.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Chega de Saudade - a História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta da China).

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