Até às estrelas com 7700 contos e o cometa que não voltou

Dia 20 de agosto de 1965. É inaugurado o Planetário Calouste Gulbenkian. Um dia antes, o repórter do Diário de Notícias foi assistir ao espetáculo. E saiu impressionado.
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Um dia antes da abertura ao público do Planetário Calouste Gulbenkian, em Lisboa, os jornalistas foram convidados para uma visita. O repórter do Diário de Notícias descreveu assim a experiência: "Através de um planetário admiram-se, de perto, todos os mistérios do Universo. A noção de tempo desaparece. O espaço adquire outras perspectivas. Durante uma hora somos espectadores, de todas as latitudes e longitudes, do surpreendente espetáculo da abóbada celeste."

A sala, com capacidade para 338 pessoas, mostrava durante uma hora "praticamente todos os fenómenos que possam ser vistos à vista desarmada no espaço celeste". "E para criar o ambiente adequado à meditação e ao estudo, o interior na abóboda artificial será envolvido por música adequada", escrevia o DN.

Todo este espetáculo era proporcionado pelo projetor vindo da Alemanha, da empresa Carl Zeiss-Jena. O UPP 23/4 era constituído por duas grandes esferas em cada uma das extremidades do corpo. No interior de cada uma delas havia uma lâmpada de tungsténio de 1000 volts rodeada de 8 lentes semiesféricas. Terá custado o equivalente a 35 mil euros e durou até 2005.

Nesse ano, e porque já não havia sequer peças sobressalentes para substituir as que se iam degradando do velhinho UPP, foi comprado o atual projetor, o Universarium IX, que custou 3,7 milhões de euros e veio da mesma empresa alemã. A diferença de preço talvez se explique assim: 32 projetores de estrelas fixas na esfera central, 9 mil estrelas em ambos os hemisférios celestes, Via Láctea, cúmulos estelares, nebulosas e constelações. O que era feito com lâmpadas de 1000 volts agora é conseguido - e com muito maior definição - com lâmpadas de 100 volts.

O astrónomo sonha, a Gulbenkian paga e o Planetário nasce

Foi em agosto de 1963 que os ministros das Finanças e das Obras públicas determinaram a criação do Planetário Calouste Gulbenkian, que ficaria integrado no Museu da Marinha. O nome foi escolhido pela simples razão de que a Fundação Calouste Gulbenkian foi a grande financiadora da obra.

Noticiava o DN a 28 de agosto: "Foi publicado pelas pastas das Finanças e das Obras Públicas um decreto a determinar a criação e integração no Museu da Marinha de um centro científico e cultural denominado "planetário Calouste Gulbenkian" cujo equipamento será totalmente custeado por uma doação de 7700 contos efetuada para tal fim pela Fundação Calouste Gulbenkian, tomando o Estado à sua conta as obras necessárias para a sua instalação e as subsequentes despesas de manutenção e funcionamento." No total a obra terá custado cerca de 11 mil contos.

Numa altura em que quase todas as grandes cidades da Europa tinham o seu planetário, ou estavam a construir um, foi da cabeça do oficial da marinha e "brilhante astrónomo amador", Comandante Eugénio Conceição da Silva, que saiu a ideia de ser erigido na cidade de Lisboa um centro de observação astronómica e um Planetário, que levasse aos cidadãos o conhecimento científico sobre o espaço e as imagens com que ele próprio se deliciava no seu observatório pessoal.

Brilhantismo não era palavra desajustada para Conceição da Silva que, entre outras coisas, tinha concebido e construído vários telescópios. Um deles, de 500 mm, foi considerado pela revista espanhola Aster, em 1952, o melhor do mundo. Conceição da Silva foi citado pelas mais conceituadas publicações da altura na área: a L"Astronomie, em 1951, e a Scientific American (em 1952) escreveram rasgados elogios ao génio do português.

Além de conceber e construir, Conceição da Silva também fotografava. E bem. Em 1954 recebeu um prémio da Sociedade Astronómica de França pela qualidade de várias fotografias de nebulosas e galáxias.

Convencido o Governo a cumprir o sonho do comandante e chegado o dinheiro da Gulbenkian, começa a desenhar-se o projeto logo em 1963. Em dois anos ficou pronta a estrutura inaugurada no exato dia em que passavam dez anos da morte de Calouste Gulbenkian. A cerimónia contou com a presença do Presidente da República Américo Thomaz, pelo presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Azeredo Perdigão e pelo Comandante Eugénio Correia da Conceição Silva que a partir daquele dia seria o diretor do Planetário de Lisboa.

Infiltrações no espaço sideral

Inaugurado a 20 de julho de 1965, em outubro de 1966 as sessões de projeção tiveram de ser interrompidas. Havia infiltrações na cúpula, que afetaram a estrutura onde a projeção era feita. Fecharam-se as portas e voltaram a abrir-se três meses depois, a 12 de janeiro de 1967.

O Planetário só voltou a encerrar em 2005 durante cerca de nove meses. Reabriu a tempo de comemorar 40 anos de existência com o espetáculo proporcionado pelo novíssimo projetor. O UPP 23/ 4 é agora uma peça de exposição que pode ser apreciada pelos visitantes do Planetário. Já não funciona, mas a memória de quem o viu a trabalhar permanece escrita nas páginas do Diário de Notícias.

Entre tudo o que viu projetado na abóbada do edifício desenhado pelo arquiteto Frederico George a maior surpresa do repórter do DN em 1965 foi esta: "Encontramos a trajetória do cometa Donati, que apareceu perante os olhos extasiados dos habitantes do ano quase longínquo de 1882 e que só voltará a surgir no ano de 2004." O Donati passou em 1852, na realidade. Descrito como "o mais espetacular cometa do século XIX", um dos primeiros a ser fotografado, não há notícia de que tenha regressado em 2004. Mas pela descrição do repórter, a imagem que se via das cadeiras da sala principal do Planetário de Lisboa, um dia antes de as portas abrirem ao público, era perfeita.

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