Eutanásia: Ordem dos Médicos chumba todos os projetos de lei
A Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias pediu à Ordem dos Médicos que se pronunciasse com urgência sobre cada um dos projetos relativos à morte medicamente assistida apresentados por BE, PS, PEV e PAN, cuja discussão na Assembleia da República está agendada para 20 de fevereiro. O DN sabe que os quatro projetos já foram analisados individualmente e que o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM) deu parecer negativo a todos, manifestando-se assim contra "a eutanásia e o suicídio assistido". O Conselho Nacional Executivo, presidido pelo bastonário, já os aprovou.
Nos pareceres o CNEDM explica que esta "reposição na nova legislatura de projetos sobre o mesmo tema não requereu argumentação diferente tida no anterior parecer coletivo", entregue em abril de 2018, altura em que ocorreu a primeira iniciativa legislativa sobre esta matéria com a discussão de todos os projetos a 29 de maio de 2018. No entanto, nos pareceres agora formulados foram introduzidos "alguns aditamentos sobre aspetos particulares de cada um dos projetos".
Mas a conclusão é a mesma para todos: "A eutanásia e o suicídio assistido", quer seja sob a designação de morte antecipada ou outras, "não poderão ter lugar na prática médica segundo a legis artis e a ética e a deontologia médicas".
O CNEDM considera que os atos constantes em todos os projetos "estão proibidos pelo Código Penal, nos seus artigos 134.º e 135.º", pelo que, e conforme referem os pareceres, de "um modo mais cru", as alterações agora solicitadas em cada um dos projetos levaria a uma alteração do Código Penal que visaria a "não punição do homicídio a pedido da vítima" e o "incitamento e ajuda ao suicídio".
O conselho de ética dos médicos aproveita para recordar em todos os pareceres a posição assumida na 70.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, realizada a 12 de outubro de 2019, que aprovou a seguinte declaração: "A Associação Médica Mundial reafirma o seu forte compromisso com os princípios da ética médica e que tem de ser mantido o máximo respeito pela vida humana. Por conseguinte, a AMM opõe-se firmemente à eutanásia e ao suicídio assistido por médico."
Para a ordem, "a aprovação de uma lei, nos termos que se perspetiva e com uma prioridade questionável, visando embora procurar soluções para problemas relevantes do fim da vida, fá-lo com soluções eticamente incorretas, sem a devida ponderação do valor da vida em pessoas muito vulneráveis. Atente-se na condição do idoso muito doente e em sofrimento que poderia ser levado a requerer pôr termo à vida, de modo a deixar de ser um peso para a família e para a sociedade".
O Conselho de Ética e Deontologia Médicas não tem dúvida de que a "eutanásia e o suicídio assistido não são práticas de assistência médica e que se situam fora dos princípios da medicina". O Código Deontológico estabelece no artigo 35, do capítulo II, Fim da Vida, que "o médico deve respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida" e que "ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia", No artigo 66 estão definidos os cuidados paliativos através dos quais "o médico deve dirigir a sua ação para o bem-estar dos doentes, evitando a futilidade terapêutica", que pode, por si só, "induzir ainda mais sofrimento".
Sobre a morte, o parecer do CNEDM sublinha o artigo 67 do Código Deontológico que determina: "O uso de meios extraordinários de manutenção de vida deve ser interrompido nos casos irrecuperáveis de prognóstico seguramente fatal e próximo, quando da continuação de tais terapêuticas não resulte benefício para o doente. O uso de meios extraordinários de manutenção da vida não deve ser iniciado ou continuado contra a vontade do doente."
Por tudo isto, no preâmbulo comum a todos os pareceres, a ordem alerta para o facto de ser "importante", quando se pondera uma nova legislação sobre uma matéria tão sensível e controversa, que se apure e avalie "o seu enquadramento nas leis portuguesas, que já contemplam os diferentes tipos de cuidados de saúde, os direitos dos utentes e a medicina".
O CNEDM enumera a legislação já existente que consubstancia a vontade própria no fim de vida e o tratamento a dar, nomeadamente a Lei n.º 25/2012, designada como Testamento Vital, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei n.º 52/2012), a recente Lei n.º 31/2018, sobre Direitos das Pessoas em Contexto de Doença Avançada e em Fim de Vida, e a Lei n.º15/2014, Direitos e Deveres dos Utentes.
Os médicos argumentam nos vários pareceres que tais iniciativas legislativas correspondem "a uma experiência internacional restrita, praticada em poucos países (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Suíça, Canadá, alguns estados dos Estados Unidos e Colômbia) e rejeitada na grande maioria.
Segundo explicou ao DN o relator principal dos pareceres, o psiquiatra José Manuel Jara, "os projetos estão fora de qualquer enquadramento ajustado à sociedade, podendo sugestionar pessoas para essa escolha, devido à carência de outros meios eficientes para minorar o sofrimento e humanizar o fim de vida". No essencial, sublinha o médico, os projetos "visam instituir por lei do Estado o suicídio ajudado ou executado, ignorando a complexidade subjetiva subjacente a essas opções e a repercussão coletiva que podem ter".
De acordo com os pareceres, o facto de os projetos incluírem a intervenção de um médico para aceitar o pedido de matar e de proporcionar ao doente os meios para tal (consoante se trate de eutanásia ou de suicídio assistido) faz que o doente perca autonomia, remetendo essa autonomia para o médico responsável pela avaliação do caso.
Ou seja, "o problema da autonomia é transposto para o médico que acolhe o pedido e que decide aceitá-lo ou não mediante uma confirmação de quesitos predefinidos na lei". O doente perde a autonomia e até a responsabilidade do ato, passando-a para o profissional. O facto de os projetos remeterem este procedimento "a ser conduzido por um médico" faz que a sua missão não seja médica, "mas tão- só a de verificar, como legista, se o candidato se enquadra nos regulamentos".
Nos documentos da ordem, sublinha-se que a ação do médico deve pautar-se pela definição do que é o ato médico. "O ato médico consiste na atividade de avaliação de diagnóstico, prognóstica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e de técnicas médicas, cirúrgicas e de reabilitação relativas à saúde e às doenças das pessoas, grupos ou comunidades, no respeito pelos valores éticos e deontológicos da profissão médica."
Nos vários pareceres é referido que "se não bastasse o enunciado destas leis para arredar e suster o ímpeto de uma duvidosa iniciativa legitimadora da eutanásia e do suicídio assistido, ainda haveria a considerar o próprio Código Penal, no que respeita aos crimes contra a vida e no que toca à propaganda ao suicídio.
O CNEDM questiona mesmo se poderá ser feita uma alteração ou alínea de exceção ao artigo 139.º que determina: "Quem, por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado como meio para produzir a morte, de forma adequada a provocar o suicídio, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias". Sendo assim, que "forma mais óbvia poderá cometer o Estado para infringir este artigo do que a legitimação do conteúdo dos projetos de morte a pedido. No fundo, práticas de suicídio institucionalizado para quem não é capaz por si de o cometer?"
Em cada um dos pareceres o CNEDM da Ordem dos Médicos aponta algumas particularidades. No que diz respeito ao projeto do BE - Projeto de Lei n.º 4/XIV/1.ª, que define e regula as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível" - o parecer da ordem considera "não se entrevê nada em que possa caber a solução terminal preconizada neste projeto de lei para legalizar o suicídio assistido e a eutanásia, com a designação eufemística de antecipação da morte".
Pelo contrário, este projeto de lei "situa-se em contradição com as leis vigentes, como um corpo estranho. Não há nenhuma necessidade assistencial que possa justificar as medidas contidas neste projeto que parece fundamentar-se num empolamento doutrinário baseado em legislação de uns poucos países e que têm evidenciado desvios perigosos pelo alargamento de práticas".
Relativamente a este projeto, a ordem sublinha que "há uma importante questão que deve ser colocada, visto que o título e todo o articulado do projeto se organiza com base na antecipação da morte, situando-se o processo no tempo e na duração da vida, teria de haver um lugar para se definir um prognóstico, delimitar um prazo. Tal não é feito".
Quanto ao PS, o Projeto de Lei nº. 104/IXV/1.ª, que pede a 50.ª alteração ao Código Penal para regular "condições especiais para a prática da eutanásia não punível", o CNEDM considera que este projeto se situa em contradição com as leis vigentes. Também neste projeto não há um prazo determinado para delimitar a morte antecipada. "Há inúmeras doenças incuráveis e fatais sem que se possa prever o prazo do exitus natural. Em relação aos casos de lesão definitiva", não sendo, por hipótese, a lesão fatal, como se poderá falar de antecipação? Esta falha na conceptualização do projeto de lei é difícil de contornar e é inerente à dificuldade intrínseca deste tipo de procedimento, que não se coaduna com os princípios da medicina".
Mas a Ordem considera que o Projeto de lei n.º 104 do PS vai mais longe do que os outros ao disponibilizar "um sítio na internet, através da Direção-Geral da Saúde, para a inscrição neste processo, o que é uma expressão de uma banalização de método, confrangedora no plano ético".
O Projeto de Lei n.º 168/XVI/1ª do PEV define o regime e as condições em que a morte medicamente assistida não é punível. No parecer, o CNEDM refere que o PEV utiliza o estereótipo suavizante "morte medicamente assistida" como se não fosse a mesma coisa que "ajudar o doente a morrer. A terminologia não é inocente e presta-se a equívocos, cobrindo o procedimento como uma prática de assistência médica mais aceitável em termos ideológicos".
Relativamente ao Projeto de Lei n.º 67/XIV/1.ª do PAN, que regula o acesso à morte medicamente assistida, a ordem tece a mesma consideração que teve em relação ao projeto do PEV sobre a terminologia usada. "A assistência médica no processo de morrer não é a mesma coisa que matar o doente ou ajudá-lo a matar-se. A terminologia não é inocente e presta-se a equívocos." Por outro lado, no parecer é ainda referido que "a confusão que lavra na justificação deste projeto de lei obriga a uma clarificação de conceitos. Os autores do projeto não sabem distinguir a boa da má prática assistencial".
A discussão de todos os projetos está agendada para dia 20. À Ordem dos Médicos falta analisar o projeto da Iniciativa Liberal entregue no início do mês. Em 2018, a ordem deu um parecer coletivo sobre todos os projetos, desta vez foi-lhe pedido que fossem analisados um a um todos os projetos, o que foi feito. Há dois anos, oito dos nove elementos que compõem o CNEDM votaram a favor do parecer coletivo que chumbava os projetos, havendo um elemento que votou contra e que apresentou uma declaração de voto.
Desta vez, e segundo foi confirmado ao DN pelo relator principal dos projetos, "este médico não se pronunciou". Os pareceres já estão na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, mas não têm valor vinculativo. Aliás, e de acordo com a atual composição do Parlamento, tais projetos sobre a morte medicamente assistida deverão ser aprovados, o que, em 2018, não aconteceu por apenas cinco votos. A favor votaram os deputados do PS, à exceção de dois, do BE e do PEV. Contra o PSD, menos seis que votaram a favor, o CDS e o PCP.
No entanto, e apesar desta tomada de posição da Ordem, há vários médicos que já vieram manifestar a sua posição relativamente à despenalização da morte assistida. Um deles tem sido o médico oncologista Jorge Espírito Santo. O mesmo acontece com os ex-diretores-gerais da Saúde, Constantino Sakellarides e Francisco George. Um dos médicos que deram cara ao movimento para a despenalização da morte medicamente assistida foi João Semedo, ex-deputado do BE, que faleceu pouco depois de os projetos terem sido chumbados em 2018.