Baixa de Lisboa sem carros. O primeiro teste à ideia de Medina acontece nesta quinta-feira
Quem é que pode entrar na nova zona de emissões reduzidas (ZER)? Como é que se fazem as cargas e as descargas para o comércio? É possível estacionar na Baixa para ir a um jantar? E para levar os filhos à escola? Nos dias que se seguiram ao anúncio do novo plano de redução de emissões para a Baixa lisboeta - que tem como objetivo afastar os carros do coração da cidade -, as perguntas de quem ali vive e trabalha multiplicaram-se. E se uns lembram a importância do gesto para o ambiente, outros agarram-se às dificuldades que podem surgir para quem percorre estas ruas diariamente.
O projeto não está encerrado, como o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, explicou durante a apresentação da ideia a 31 de janeiro. Agora, inicia-se um ciclo de reuniões com as juntas de freguesia, os moradores e os comerciantes para clarificar o plano e resolver problemas. Os primeiros encontros, agendados para esta quinta-feira, acontecem às 18.00 no Espaço Santa Catarina, na freguesia da Misericórdia, e às 21.00 no Palácio da Independência, em Santa Maria Maior.
A proposta da ZER prevê que o trânsito automóvel na Baixa-Chiado passe a ser exclusivo para residentes, portadores de dístico e veículos autorizados (comerciantes, táxis, motos e veículos elétricos) com matricula posterior a 2000, entre as 06.30 e as 00.00, a partir do verão. A exceção são todos os carros de cidadãos com mobilidade reduzida, das forças e serviços de segurança, de proteção civil e serviços em missão de urgência, veículos funerários em serviço, motociclos, ciclomotores e velocípedes.
"Enquanto associação não colocamos em causa os objetivos desta ideia, mas essa bondade não se aplica a todo o projeto. Causa-nos muitas preocupações, muitas incertezas", diz, ao DN, Manuel Lopes, presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina. "Não está garantida a possibilidade de todos os consumidores da Baixa e dos seus moradores poderem deslocar-se livremente por esta zona tão emblemática e histórica. Querem radicalizar os costumes. Retirar todo o espaço para carros na Praça da Figueira o que, para nós, é impensável. Porquê só a Baixa?", questiona.
Alguns cidadãos mobilizaram-se e criaram uma petição "contra as obras para fechar a Baixa de Lisboa". Exigem a "suspensão imediata do projeto", que dizem condicionar as liberdades de quem passa por esta zona da capital e ir "arrasar o comércio". "Vai estrangular a já complicada circulação automóvel em redor do centro histórico, os carros que iam para a Baixa ou pela Baixa vão congestionar mais ainda as vias circundantes", acusam os peticionários, que consideram que os idosos residentes serão os mais prejudicados. "Lisboa só para amigos?", provocam.
No texto, descrevem a obra como "desnecessária" e lembram que a rede de transportes públicos é "pouco abrangente, repleta de atrasos e constantes falhas". O abaixo-assinado, dirigido à Assembleia da República e ao governo, já ultrapassou as quatro mil assinaturas, o número necessário para que esta tenha de ser obrigatoriamente discutida no Parlamento.
Apesar das críticas e das preocupações próprias de quem faz a sua vida na Baixa, a estratégia tem sido também apontada como um contributo decisivo para reduzir a pegada ecológica da capital. Para o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (onde decorrerá uma das reuniões), Miguel Coelho, "há muitos detalhes que têm de ser bem trabalhados e resolvidos", como o trânsito desviado para a Rua da Madalena ou o horário das cargas e descargas de forma a não incomodar de noite os residentes, explica ao DN, sem deixar, no entanto, de dizer que "a iniciativa é virtuosa". "Entram aqui cem mil carros e nós não podemos assobiar para o lado, ver a Amazónia a arder ou o senhor Trump a dizer aquelas parvoíces todas sobre as alterações climáticas, e, quando alguém tenta tomar uma medida concreta, dizer que esta não se adequa", afirma Miguel Coelho.
"A Baixa precisa disto", confirma Paulo Ferrero, de 57 anos, um dos membros do Fórum de Cidadãos de Lisboa. "As pessoas são inacreditáveis quando lhes tocam nos seus carros. Foi assim há dez anos com as restrições na Praça do Marquês de Pombal e há 20 anos com as restrições ao centro histórico, no Terreiro do Paço, na Rua Augusta. Temos todos de nos habituar a ir de transportes para a Baixa, só assim a podemos preservar", assume o lisboeta.
A Câmara Municipal de Lisboa estima que quase 60% dos visitantes da Baixa-Chiado e do Príncipe Real já se desloquem de transportes públicos, que 11% preferem caminhar e apenas 17% escolhem o carro como forma de chegar a estes locais. São os resultados de um inquérito promovido pela autarquia, em dezembro.
A Baixa é atualmente servida por mais de um milhão de lugares por dia em transportes públicos, sendo que a maior oferta é de autocarros (3663 circulações por dia). "Nos períodos de ponta, a cada dez segundos há uma nova circulação de transporte público", lê-se no relatório técnico da zona de emissões reduzidas Avenida-Baixa-Chiado.
A ZER abrange parte das freguesias de Santa Maria Maior, Misericórdia e Santo António, sendo delimitada a norte pela Calçada da Glória, Praça dos Restauradores e Praça do Martim Moniz, e a sul pelo eixo formado pelo Cais do Sodré, Rua Ribeira das Naus, Praça do Comércio e Rua da Alfândega.
Para além das restrições no acesso automóvel, o projeto prevê a proibição da circulação na faixa central da Avenida da Liberdade entre os Restauradores e a Rua das Pretas e a reposição do modelo original de circulação ascendente/descendente nas laterais da Avenida. A Câmara Municipal de Lisboa acredita que estas regras eliminem ainda 250 lugares de estacionamento, que, por sua vez, serão redistribuídos pelos moradores e por cuidadores.
Quanto à hipótese de entrar de carro nesta zona durante algum tempo, por exemplo, para visitar alguém, será necessário fazer uma espécie de requisição à câmara, através de uma plataforma, e esta benesse está limitada a dez utilizações por mês. "Nós precisamos mesmo destas alterações. Precisamos de uma cidade mais amiga das pessoas, dos lisboetas, dos turistas. Uma cidade mais humana com qualidade de vida e com o lema: a rua é sua", declarou, durante a apresentação do projeto, Fernando Medina.
Dos partidos representados na Assembleia Municipal de Lisboa, o Bloco de Esquerda foi o único a aplaudir por inteiro a medida, sugerindo ainda o alargamento da ideia a outras zonas da cidade, como o Parque das Nações, Belém e a Avenida Almirante Reis. O PCP e o CDS reconheceram a importância da ação, mas o primeiro partido mostra reticências sobre o verdadeiro impacto na "qualidade do ar da cidade" e o segundo antevê "enormes riscos". Já o PSD descarta os pontos positivos e fala em injustiça social: "Temo que a Baixa se transforme num parque temático de recreio, para turistas e estrangeiros residentes com vistos gold que passam umas semanas por ano na cidade", disse o vereador do PSD João Pedro Costa.
As mudanças estão agendadas para o verão - durante os meses de julho, agosto. Até lá, durante o mês de fevereiro, o executivo camarário estará a apresentar o projeto às juntas de freguesia, associações de moradores, de comerciantes e à assembleia municipal. Só em março, o plano deverá ser aprovado e o regulamento enviado para um período de consulta pública. Em junho arrancam as campanhas de informação sobre as novas regras, apesar de o registo para a obtenção dos dísticos poder ser efetuado a partir de maio.