Eu e Gisele Bündchen estamos terrivelmente em falta um com o outro - embora ela não saiba disso.No Rio, você sabe como é: não existe culto da celebridade. Todos são famosos, donde ninguém é famoso, todos se cruzam nas ruas. Ninguém se deixa siderar ou babar por ninguém. Mas há uma exceção: uma mulher que nos visita menos do que deveria e, quando entre nós, se sair à rua, não deixará de atrair mil olhos sobre ela e provocar copiosa baba coletiva - Gisele Bündchen. Os meus olhos, inclusive, e talvez também a baba..Confesso que nunca estive a menos de dez ou quinze quilómetros de Gisele. Nas poucas vezes em que vem ao Rio, e quase sempre em segredo, a trabalho, posso perceber que estamos perigosamente perto, porque ela tem o poder de irradiar ondas que anunciam sua presença. O vento passa por seus cabelos e muda de direção. Nuvens desistem de chover. O sol vai do infravermelho ao ultravioleta em instantes. Sua presença na cidade influi nos quatro elementos. Gisele é brasileira, sabia? Nascida no Rio Grande do Sul. Tem nome alemão, beleza de alemã e pode pensar-se que é alemã, mas, quando nasceu, sua família já estava aqui há seis gerações. Talvez seja mais brasileira do que eu..Mas, enfim, o facto de sermos patrícios e estarmos eventualmente na mesma cidade não quer dizer nada, porque não frequento as passarelas da moda na Marina da Glória ou no Copacabana Palace, que são o seu território. E, ao que me consta, Gisele não tem tempo para ouvir sambas e choros na Rua do Ouvidor ou andar à toa pelo Leblon - que são o meu. Donde a chance de nos encontrarmos é remota. Da mesma forma, e como nunca me pediram para entrevistar Gisele, jamais falei com ela por telefone e sequer trocámos um e-mail. Enfim, estamos terrivelmente em falta um com o outro, embora ela não saiba disso e o prejuízo seja só meu. E que o leitor não cante vitória, porque também nunca esteve com Gisele ao vivo, nem falou com ela ao telefone e nem lhe mandou um reles telegrama..Na verdade, sei muito pouco sobre Gisele. Não sei, por exemplo, sua idade, onde mora (na Europa, nos Estados Unidos ou em alguma ilha fora dos mapas?), se prefere Jean-Paul Sartre a Albert Camus ou se tem marca de vacina no bumbum. Sei que desfila vestidos, biquínis, joias e sandálias nos salões, e parece fazer isso tão bem que se tornou, há muito tempo, a modelo mais importante do mundo e já está até pensando em se aposentar. Como não uso os produtos que ela vende, posso analisá-la com o distanciamento exigido pelos críticos. (Eu preferiria dispensar esse distanciamento e, se pudesse, gostaria de analisá-la bem de perto, para me certificar de algumas coisas.).Por exemplo: o frescor. Pelo que vejo de Gisele nas fotos ou na TV, ela parece sair do chuveiro, enfiar-se nas roupas do desfile e marchar incontinente para as câmaras, sem maiores rituais diante do espelho. Será isso mesmo? Será que a deixam desfilar sem maquilhagem, com o rosto lindamente lavado, cheirando apenas a sabonete? A americana Suzy Parker, que foi a Gisele Bündchen dos anos 1950, também passava essa impressão - era fulgurante até de rolinhos no cabelo ou de vestido sujo de ovo ao cozinhar. Mas Gisele tem uma vantagem: é sensual - naturalmente sensual, sem fazer nenhum esforço, mesmo sem saber ou querer. É sensual até em anúncio de chinelo de dedo, como fez certa vez para a televisão..Ela não tem nada que ver com as modelos que passaram por minhas fatigadas retinas nas últimas décadas, mulheres sinistras, magérrimas e com olheiras, parecendo foragidas de filme expressionista alemão dos anos 1920. Ao contrário: Gisele é the girl mais next door que já vi nesse empoado, blushado e pankecado mundo da moda. E não adianta o fotógrafo mandá-la fazer cara de infelicidade profunda ou de quem está com dor de barriga, como eles ordenam às pobres das outras modelos. Aliás, quando se trata de Gisele, isso nem lhes deve passar pela cabeça..O formidável em Gisele é que ela parece real. Ao descer da passarela, e sem mesmo trocar de roupa, poderia ser a moça deitada na toalha ao lado, na praia, ou aquela com quem nos cruzamos na porta do cinema, comendo pipoca. Mas é claro que isso é apenas uma fantasia. Enquanto Gisele for Gisele Bündchen, seus patrocinadores nunca lhe permitirão ir à praia de graça, usando um biquíni velho, ou se dar ao desfrute de ser vista comendo pipoca na porta do cinema..Na verdade, esta é apenas uma das duas coisas que separam Gisele das mulheres da vida real, que vão à praia ou comem pipoca. Gisele só pode parecer - e não ser - real. A outra coisa, e que eles não contam para ninguém, é que, para ficarem deslumbrantes com as roupas e os adereços que Gisele desfila, as mulheres que compram esses itens teriam, naturalmente, de ser Gisele Bündchen..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China)
Eu e Gisele Bündchen estamos terrivelmente em falta um com o outro - embora ela não saiba disso.No Rio, você sabe como é: não existe culto da celebridade. Todos são famosos, donde ninguém é famoso, todos se cruzam nas ruas. Ninguém se deixa siderar ou babar por ninguém. Mas há uma exceção: uma mulher que nos visita menos do que deveria e, quando entre nós, se sair à rua, não deixará de atrair mil olhos sobre ela e provocar copiosa baba coletiva - Gisele Bündchen. Os meus olhos, inclusive, e talvez também a baba..Confesso que nunca estive a menos de dez ou quinze quilómetros de Gisele. Nas poucas vezes em que vem ao Rio, e quase sempre em segredo, a trabalho, posso perceber que estamos perigosamente perto, porque ela tem o poder de irradiar ondas que anunciam sua presença. O vento passa por seus cabelos e muda de direção. Nuvens desistem de chover. O sol vai do infravermelho ao ultravioleta em instantes. Sua presença na cidade influi nos quatro elementos. Gisele é brasileira, sabia? Nascida no Rio Grande do Sul. Tem nome alemão, beleza de alemã e pode pensar-se que é alemã, mas, quando nasceu, sua família já estava aqui há seis gerações. Talvez seja mais brasileira do que eu..Mas, enfim, o facto de sermos patrícios e estarmos eventualmente na mesma cidade não quer dizer nada, porque não frequento as passarelas da moda na Marina da Glória ou no Copacabana Palace, que são o seu território. E, ao que me consta, Gisele não tem tempo para ouvir sambas e choros na Rua do Ouvidor ou andar à toa pelo Leblon - que são o meu. Donde a chance de nos encontrarmos é remota. Da mesma forma, e como nunca me pediram para entrevistar Gisele, jamais falei com ela por telefone e sequer trocámos um e-mail. Enfim, estamos terrivelmente em falta um com o outro, embora ela não saiba disso e o prejuízo seja só meu. E que o leitor não cante vitória, porque também nunca esteve com Gisele ao vivo, nem falou com ela ao telefone e nem lhe mandou um reles telegrama..Na verdade, sei muito pouco sobre Gisele. Não sei, por exemplo, sua idade, onde mora (na Europa, nos Estados Unidos ou em alguma ilha fora dos mapas?), se prefere Jean-Paul Sartre a Albert Camus ou se tem marca de vacina no bumbum. Sei que desfila vestidos, biquínis, joias e sandálias nos salões, e parece fazer isso tão bem que se tornou, há muito tempo, a modelo mais importante do mundo e já está até pensando em se aposentar. Como não uso os produtos que ela vende, posso analisá-la com o distanciamento exigido pelos críticos. (Eu preferiria dispensar esse distanciamento e, se pudesse, gostaria de analisá-la bem de perto, para me certificar de algumas coisas.).Por exemplo: o frescor. Pelo que vejo de Gisele nas fotos ou na TV, ela parece sair do chuveiro, enfiar-se nas roupas do desfile e marchar incontinente para as câmaras, sem maiores rituais diante do espelho. Será isso mesmo? Será que a deixam desfilar sem maquilhagem, com o rosto lindamente lavado, cheirando apenas a sabonete? A americana Suzy Parker, que foi a Gisele Bündchen dos anos 1950, também passava essa impressão - era fulgurante até de rolinhos no cabelo ou de vestido sujo de ovo ao cozinhar. Mas Gisele tem uma vantagem: é sensual - naturalmente sensual, sem fazer nenhum esforço, mesmo sem saber ou querer. É sensual até em anúncio de chinelo de dedo, como fez certa vez para a televisão..Ela não tem nada que ver com as modelos que passaram por minhas fatigadas retinas nas últimas décadas, mulheres sinistras, magérrimas e com olheiras, parecendo foragidas de filme expressionista alemão dos anos 1920. Ao contrário: Gisele é the girl mais next door que já vi nesse empoado, blushado e pankecado mundo da moda. E não adianta o fotógrafo mandá-la fazer cara de infelicidade profunda ou de quem está com dor de barriga, como eles ordenam às pobres das outras modelos. Aliás, quando se trata de Gisele, isso nem lhes deve passar pela cabeça..O formidável em Gisele é que ela parece real. Ao descer da passarela, e sem mesmo trocar de roupa, poderia ser a moça deitada na toalha ao lado, na praia, ou aquela com quem nos cruzamos na porta do cinema, comendo pipoca. Mas é claro que isso é apenas uma fantasia. Enquanto Gisele for Gisele Bündchen, seus patrocinadores nunca lhe permitirão ir à praia de graça, usando um biquíni velho, ou se dar ao desfrute de ser vista comendo pipoca na porta do cinema..Na verdade, esta é apenas uma das duas coisas que separam Gisele das mulheres da vida real, que vão à praia ou comem pipoca. Gisele só pode parecer - e não ser - real. A outra coisa, e que eles não contam para ninguém, é que, para ficarem deslumbrantes com as roupas e os adereços que Gisele desfila, as mulheres que compram esses itens teriam, naturalmente, de ser Gisele Bündchen..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China)