Kamikazes, raptores e traficantes: o perigo dos talibãs libertados
Talibãs que estavam a treinar para ser bombistas suicida, homens responsáveis pelo fabrico dos coletes de explosivos, raptores, traficantes de droga e até combatentes estrangeiros. Cerca de três mil talibãs já foram libertados das prisões afegãs, depois de prometerem não voltar a pegar em armas. Mas a promessa parece ficar pelo papel que assinam.
"Se os americanos não saírem, vamos continuar a nossa jihad [guerra santa], porque eles mataram muitos afegãos nas suas operações", disse Mohamed Daud, ao ser libertado da prisão da antiga prisão de Bagram, no norte de Cabul, em maio. E não foi o único a dizer ao mesmo aos jornalistas da agência francesa AFP.
"Não queremos mais forças estrangeiras no nosso país", acrescentou, antes de apanhar um táxi de regresso à sua aldeia, depois de receber o equivalente a 65 dólares das autoridades. Daud, que tem 28 anos, foi preso há nove pelos EUA no norte do Afeganistão.
No total, está prevista a libertação de cinco mil prisioneiros talibãs, em troca de mil membros das forças de segurança afegãs que estão nas mãos do grupo insurgente. Até agora, foram libertados 750 destes.
O porta-voz do talibãs, Suhail Shaheen, escreveu no Twitter esta quinta-feira que a libertação de prisioneiros é um "passo positivo" e apontou para o "bom progresso" desta iniciativa. Disse ainda que os talibãs estão prontos a começar a negociar uma semana após o último preso ser libertado.
O presidente afegão, Ashraf Ghani, disse também quinta-feira que os restantes dois mil prisioneiros serão libertados "dentro de um curto período", indicando que em breve será conhecida a data. Em declarações vídeo para um think tank norte-americano, lamentou contudo que o número de prisioneiros das forças de segurança nas mãos dos talibãs não pare de mudar. "Precisamos que clarifiquem o destino dos que estão com eles e que a última pessoa que têm será libertada", acrescentou.
O regresso de cinco mil talibãs às fileiras do grupo representaria um aumento de até 10% no número de combatentes, que se estima ser entre 50 mil e cem mil. Mas, mais do que mais homens no terreno, "os que nos preocupam são os cérebros", disse um oficial de segurança à AFP, indicando que um dos prisioneiros assumiu a liderança de um comando dois dias após sair da prisão e outro é responsável por um homicídio.
A 29 de fevereiro, o governo norte-americano assinou um acordo histórico com os talibãs que prevê a retirada de todos os militares do país até meados do próximo ano em troca de garantias de segurança - o calendário estará contudo adiantado e poderá ser possível sair até às presidenciais de novembro, dando um trunfo eleitoral a Donald Trump.
Os EUA estão no Afeganistão há quase duas décadas, tendo invadido após os atentados do 11 de Setembro de 2001, com o objetivo de derrubar os talibãs que acusavam de dar guarida ao líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Vários presidentes prometeram sair, mas nenhum conseguiu fazê-lo.
O acordo foi assinado entre EUA e talibãs, com a porta a ficar aberta para negociações entre estes e o governo afegão -- cuja legitimidade não é reconhecida pelo grupo insurgente.
A libertação de presos talibãs fazia parte do acordo, mas tinha que ser aprovado por Cabul, que mostrou resistência em avançar com o plano. Além disso, o Afeganistão estava envolto numa crise política, com o presidente Ashraf Ghani e primeiro-ministro Abdullah Abdullah a reclamarem a vitória nas presidenciais de setembro. Após meses de mediação, foi alcançado um acordo em meados de maio, segundo o qual o primeiro fica na presidência e o último assume a liderança do Alto Conselho para a Reconciliação Nacional, responsável pelo processo de paz.
Com o avanço político veio a trégua de três dias anunciada pelos talibãs durante o festival Eid al-Fitr, que marca o final do mês sagrado do Ramadão. "Não realizem operações ofensivas contra o inimigo em lado nenhum. Se alguma ação for empreendida contra vocês pelo inimigo, defendam-se", disse o porta-voz talibã Zabihullah Mujahid a 24 de maio, na véspera do início da trégua.
Esta foi apenas a terceira trégua alguma vez declarada pelo grupo -- a primeira foi em 2018, durante o mesmo festival, e a segunda em relação aos militares norte-americanos, após a assinatura do acordo com Washington. Em resposta à trégua e como demonstração de boa-fé, Ashraf Ghani anunciou que a libertação de prisioneiros talibãs (que estava parada) seria acelerada.
Desde então, os talibãs têm evitado grandes ataques contra cidades, mas continuaram a atingir as forças afegãs nas zonas rurais. Ainda no sábado, a explosão de uma bomba matou 11 milicianos pró-governamentais no norte de Afeganistão, com o ataque a ser atribuído aos talibãs.
Na véspera, e pela primeira vez desde a trégua, os militares norte-americanos tinham procedido a bombardeamentos de posições talibãs, "Repetimos: todos os lados têm que reduzir a violência para permitir que o processo de paz avance", escreveu o porta-voz dos militares norte-americanos, Sonny Leggett, no Twitter.
A pandemia da covid-19 ajudou não só a forçar uma solução política para o país, mas também a acelerar a libertação dos presos. O Afeganistão tem mais de 22 mil casos confirmados (incluindo milhares em zonas controladas pelos talibãs) e 405 mortes, mas a capacidade de teste é muito reduzida, assim como as condições de saúde.
Quando o vírus entrou no país, com o regresso dos migrantes infetados do Irão (o mais afetado da região), os talibãs lançaram uma campanha de combate ao covid-19. A ideia era mostrar que conseguiam lidar melhor com o problema do que o próprio governo, publicando imagens a distribuir máscaras ou ensinar a importância de uma boa higiene. Permitiram até que as autoridades de saúde entrassem em algumas áreas para monitorizar o contágio. Mas as pessoas queixam-se que foram abandonadas e que não têm acesso a testes.
A doença terá também atingido a própria liderança talibã. A Foreign Policy escreveu, no início deste mês, que o líder dos talibãs, Haibatullah Akhunzada, terá morrido com coronavírus. Os talibãs negaram, mas Akhunzada não é visto em público há mais de um ano, desde a morte do irmão no bombardeamento de uma mesquita no Paquistão de que ele era imã.
Uma mensagem sua foi divulgada durante o festival do Eid, apelando às pessoas doentes que procurassem ajuda, mas alegando também que o vírus era causado pela "transgressão da humanidade contra a religião de Alá". Para o combater, as pessoas deviam "pedir o perdão de Alé e parar de violar os seus comandos"..
Além disso, quem também terá apanhado o novo coronavírus é o número dois de Akhunzada, Sirajuddin Haqqani, chefe de operações dos talibãs e líder da rede terrorista Haqqani, próxima da Al-Qaeda. Ainda segundo a Foreign Policy, o vazio de poder foi preenchido por Mohammad Yaqoob, o ambicioso filho de Mullah Omar, o antigo comandante mujahedine que liderou os talibãs entre 1994 e 2013 e o Afeganistão entre 1996 e 2001.
Mas este não será muito popular entre os talibãs (perdeu a luta pela liderança em 2015), com as autoridades afegãs a temerem uma divisão dentro do grupo que torne impossível um diálogo de paz.
Em relação a Haqqani, este disse no passado fim de semana que a vontade de negociar com Cabul não significa que vão "negligenciar a jihad ou o reforço das suas capacidades militares", o que foi lido como prova de que os talibãs libertados devem voltar às fileiras do grupo.
Um comandante talibã no Paquistão confirmou isso mesmo à AFP, sob anonimato: "Não deve haver qualquer ambiguidade no facto de voltarem aos combates." E acrescentou: "Há uma jihad em curso, que continuará até que nós cheguemos a acordo com o governo de Cabul ou que um cessar-fogo seja anunciado."