Sérgio Figueiredo: "Mário Machado na TVI foi um erro"

O diretor de informação da TVI, Sérgio Figueiredo, explica o que correu mal, assume erros, explica o que não controla e aponta o dedo à organização das televisões que não se adaptaram ao presente.
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Ser diretor de informação de uma televisão generalista nos dias que correm coloca novos problemas e questões. Há um ano provavelmente esta polémica com Mário Machado não existia com tanta força...
Em relação a este caso concreto, o diretor de informação da TVI considera que a entrevista foi inoportuna e irrelevante. Irrelevante porque, felizmente, uma personagem com aquelas características não tem relevo na sociedade, não é representativa. E inoportuna, de facto, porque as democracias não se estão a tratar muito bem a si próprias.

Como é que esta entrevista foi decidida?
Eu, como já tive oportunidade de dizer, não preciso de justificar uma decisão que não tomei. É sabido e conhecido, ou achava eu que era sabido e conhecido, que os conteúdos dos programas de entretenimento dependem de outra direção, não têm uma intervenção jornalística e editorial da parte dos jornalistas da TVI. Mas isto está tão nebuloso e confuso - acho mesmo que as pessoas estão de cabeça perdida -, que o próprio sindicato dos jornalistas confundiu os planos. O sindicato dos jornalistas não é o sindicato da televisão. E foi isso que me fez fazer aquilo que era suposto o sindicato fazer, em vez de fazer uma queixa inopinada contra a TVI. Tive de defender os meus que, no fundo, são os que o sindicato devia defender.

Há uma parte que não é bem assim. A seguir ao programa Você na TV, Mário Machado esteve na TVI 24, no programa SOS 24 e, esse sim, é um programa de informação.
A polémica está centrada no Goucha e no Você na TV, portanto não vamos colocar as coisas nos mesmos planos, até porque três quartos do comunicado do sindicato dos jornalistas e da queixa são sobre aquele programa, não são sobre o SOS 24. E posso explicar o que aconteceu: nós soubemos já em emissão que o Mário Machado estava nos estúdios da TVI. E o Manuel Luís Goucha, por maior contraditório que tentasse fazer, não é um ativista que represente as pessoas que são o alvo daquela figura. Esperámos que o senhor saísse do estúdio e tomámos a decisão de colocá-lo perante um contraditório de facto, com um ativista da Associação SOS Racismo. Mário Machado não foi convidado para o SOS 24, independentemente do que aconteceu. Decidimos fazê-lo numa atitude de responsabilidade e de solidariedade. E isso foi feito para tornar a TVI mais imune a uma polémica que, aliás, nós não imaginávamos que ia atingir a dimensão que atingiu.

Não?
Acho que há muita hipocrisia e falso moralismo, acho mesmo. Aquilo tem a dimensão que tem, não justifica a polémica que existiu. Volto a dizer: Bin Laden foi um furo jornalístico da CNN. Eu tenho dificuldade em conviver com o facto de as pessoas não refletirem sobre si próprias, porque "jogar pedra na Geni" já o Chico Buarque cantava e é muito fácil. Há toda uma sociedade corrompida, viciada, que contribui para que haja uma série de fenómenos que não são ainda, felizmente, portugueses, mas que são internacionais. E não é por passarem na televisão, por serem criados pelas televisões que eles existem. O Bolsonaro não foi uma invenção da televisão. O tempo em que a Globo fazia os presidentes do Brasil acabou.

Só para esclarecer: a direção de informação soube que Mário Machado estava em antena naquele momento?
Naquele momento, quando começou. Eu, por acaso, não estava na redação, mas fui consultado. Evidentemente, uma coisa com este melindre... Quem faz jornalismo percebe que aquele não é um entrevistado qualquer. Achámos que era bom para a estação pô-lo em confronto com alguém que pode sair da pele do jornalismo ou de um entrevistador. Foi essa a decisão que nos conduziu a fazer uma coisa que não estava prevista três horas antes.

Por acaso já corria nas redes sociais a informação de que ele ia estar, porque o próprio Goucha pôs.
Nós não soubemos.

No programa SOS 24 Mário Machado foi apresentado como alguém que tem um passado de extremista. Até essa expressão foi infeliz, não é? Ficou contente com a cobertura do SOS 24?
Ficou claro que a presença de Mário Machado na TVI foi um erro. Acho que isso está bem evidente. O Goucha, na própria sexta-feira, acabou por dizer isso. Acho que há demasiada gente a ocupar as mãos para apanhar as pedras da calçada para atirar à TVI e que não deixa pelo menos uma liberta para meter a mão na consciência. É muito fácil dizermos que é esta presença desta figura sinistra num programa de televisão que faz o populismo e os perigos à democracia sobressaírem.

Considera que a reação é excessiva, é isso?
É hipócrita. Bin Laden, quando é entrevistado pela CNN é um furo jornalístico. Custa-me muito ver partidos que têm assento na Assembleia da República não fazerem uma reflexão sobre o exemplo que eles próprios dão e a degradação que isso implica na imagem das instituições democráticas e o espaço e o campo que se abre ao populismo. Este é um tema da democracia, se não fosse era muito fácil de resolver.

Por isso é que comecei por perguntar como é que um diretor de informação de um canal generalista, em concorrência, se sente e age neste mundo tão perigoso, em que cada ato vale muito mais do que o próprio ato.
Então não vamos falar sobre Mário Machado. A questão é muito vasta e é uma questão realmente do regime, nem é do sistema, é do regime. Infelizmente o que eu vejo é que as bases da sociedade ruíram ou estão a ruir. O definhamento dos jornais, da imprensa escrita, a perda cada vez mais visível e continuada da influência das televisões tradicionais. Os meios de comunicação social não são apenas uma forma de empregar umas quantas pessoas, eles próprios constroem uma base de conhecimento da sociedade que se está a fragmentar. Isto não é uma intuição nem uma premonição. Hoje um político pode ser eleito Presidente da República sem dar uma entrevista a uma televisão, sem fazer campanha eleitoral, andando simplesmente nas redes sociais, que constituem um mundo paralelo que constrói uma realidade paralela que, muitas vezes, soterra a própria verdade. O primeiro sentimento de um diretor de informação de um canal generalista num sistema democrático não é de impotência, mas é de perplexidade, porque já não passa tudo por aqui. Isto significa estar precisamente num sítio que corre a céu aberto, que algumas vezes tresanda a esgoto, não é sujeito a regulação de espécie alguma, não tem questões como a que me está a colocar e a que eu tenho o dever de responder. Nesse sítio formam-se presidentes da república. Este é um problema de cidadania antes de ser um problema de um diretor de informação. Nós, mais uma vez, como temos esta profissão - e não é uma conversa de missionário nem messiânico -, temos de refletir sobre o papel que temos e o enquadramento em que trabalhamos. E se as condições em que trabalhamos afetam muito a nossa capacidade de afirmação da independência, da defesa da liberdade.

Condições, tais como guerras de audiências...?
Mas uma televisão privada sempre dependeu de audiências. Felizmente, porque não queremos viver de subvenções. Tem é que se ver se as leis que nos enquadram são as mais adequadas aos tempos que correm, porque são leis arqueológicas. Já agora, passando para o papel que as televisões, e não só a informação, têm na estruturação da sociedade, não sei, por exemplo, como se sobrevive em Portugal sem as novelas que os canais generalistas produzem diariamente, sem toda uma fileira de produção de ficção, atores, argumentistas...

Aliás, o que se coloca neste caso, precisamente, é que as pessoas recebem, por exemplo, os programas da manhã e da tarde como espécie uma espécie de híbrido entre informação e entretenimento.
E essa era uma boa razão para que a informação fizesse - ou tivesse responsabilidade sobre esses conteúdos. Porque quem está em casa vê um cubo com um logótipo, não tem um organigrama da empresa na mão.

A informação devia intervir nestes programas, é isso?
Nalgumas áreas. Nesta, claramente. Vamos lá ver, noticiar crime ou questões de segurança em Portugal também não nasceu nesta casa, nem hoje. Há jornais especialistas nisso, e as pessoas estão despertas para esse problema. Os governos também se organizaram para que haja um ministro das polícias porque a questão da segurança dos cidadãos é relevante em qualquer cidade, em qualquer tempo. Os programas de entretenimento têm crónicas policiais, de crime e de segurança desde que nasceram. Mas, de facto, há aí uma zona em que é híbrida. Esses conteúdos também aparecem nos alinhamentos dos jornais, na televisão. O que eu estava a dizer, e era quase em tom de desafio, é que as fronteiras entre o entretenimento e o jornalismo estão mais na cabeça das pessoas que produzem os conteúdos e que os regulam do que no espectador. O que nos convoca também para olhar para a forma como as empresas que estão a produzir esse tipo de conteúdos se organizam e tutelam essas áreas.


Como é que o diretor de informação se sente ao ver que há uma pessoa que é apresentada como um repórter sem o ser?
Está errado. Se é verdade que não tem carteira de jornalista, está errado, não é repórter.

Depois de ver o resultado da ida de Mário Machado à TVI 24, ficou contente, ou preferia simplesmente tê-lo afastado e não o ter levado lá?
O totobola à segunda-feira é mais fácil... E a lei de Murphy também existe. Não tivemos sorte no contraditório. A pessoa que esteve no SOS 24 não foi, digamos, tão assertiva como esperávamos. Eu gostava de ter tido ali um programa em que o senhor Machado tivesse sido confrontado por alguém com um nível de assertividade pelo menos igual ao dele.

E não colocaria a hipótese de ser um jornalista a fazer isso?
Eu queria, mas nós achávamos, e acho que isso não é difícil de compreender, que esta associação, constituída para um fim e com uma militância louvável, estaria em condições de fazer esse contraditório em forma de debate. É o que se faz em todos os domínios, desde a política a áreas sociais. Esse confronto era um confronto que devia ter sido mais esclarecedor do que acabou por ser. Se tivéssemos conseguido um convidado que tivesse feito o confronto que esteve na base da nossa decisão, teria ficado mais satisfeito, claro. Mas acho que não teria sido suficiente para apagar a polémica.

Eu não estou a dizer que ele não podia lá estar, estou a perguntar se ele devia lá estar.
Eu coloquei a coisa na sequência que ela aconteceu. Na fita do tempo.

Não houve uma certa tabloidização de conteúdos com a entrada do Correio da Manhã na guerra das televisões? Esse programa do SOS 24 é efeito disso? Como é que reagiram e quais são os efeitos que isso tem na atividade diária da direção de informação da TVI?
A CMTV não é concorrente da TVI. Mesmo esse programa, o SOS 24, já existiu na TVI antes de eu ser diretor. Sobre a CMTV, a única coisa que posso dizer é que não me serve de referência para definir o posicionamento da TVI 24 e das opções editoriais. É outro tipo de produto, que tem a sua plateia, e com bastante sucesso, porque tem crescido. Mas não vamos por aí. Não é algo que nos ocupe, nem confronto esses números no dia-a-dia. Quando vejo as audiências diariamente da TVI 24 comparo com os iguais.

Por que motivo não compara com a CMTV?
Porque é um canal generalista no cabo. A TVI 24 tem como concorrentes, a SIC Notícias e a RTP 3, e era o que mais faltava que os jornais que temos na TVI generalista, com mais de um milhão de espectadores, estarem a seguir as pisadas de jornais com cem mil. Não faz sentido nenhum, nem pela lei dos números. E também por uma questão de opção, o nosso jornalismo é diferente. Só para me reportar aos últimos meses: recuperamos um comentador como Miguel Sousa Tavares, um espaço de grande investigação da Ana Leal e, agora, da Alexandra Borges, um comentador em prime time durante 15/20 minutos a fazer a análise de assuntos internacionais. Não me parece que seja propriamente uma tabloidização da nossa informação.

A ida de Cristina Ferreira para a SIC não tem que ver consigo, mas tem um efeito e muda as regras do jogo das audiências para já. Nesta semana a SIC ganhou à TVI e ganhou sobretudo no jornal da tarde. Que efeito é que isso tem?
É fazer melhor. Não estivemos à espera que a Cristina Ferreira fosse para a SIC para reforçarmos a independência e a qualidade dos nossos conteúdos. Posso acrescentar também o José Eduardo Moniz que faz um programa diferente, é um espaço que não deixa de ser um espaço de opinião. Dentro de dez dias vamos ter mais dois conteúdos dentro do jornal que visam, precisamente, ganhar e reforçar audiências.

Podia haver jornais mais curtos? Isso ajudava?
Depende do que tenho para pôr lá. Há alturas em que 70 minutos não chegam, há alturas em 70 minutos são demais. Mas eu tendo a introduzir também outras variáveis nessa situação, porque o jornal mais curto à noite perde sempre. Portanto não sei se em Portugal não seremos mesmo diferentes e não teremos um interesse especial pela informação. Não foi sempre assim, é verdade, mas também é um facto que sempre que cresceram beneficiaram com isso. A RTP tem há muitos anos um jornal que não chega a 60 minutos e não beneficia com isso. Acho que estamos, neste momento e apesar de tudo, em sintonia com aquilo que as pessoas procuram.

Como é que viu o convite que se seguiu, ao Alexandre Frota, que depois acabou até por não vir, não teve qualquer opinião sobre o assunto?
Isso não tem que ver comigo, por isso não comento.

Numa entrevista ao DN disse que a informação da TV não tem de trabalhar só para os números. Mantém?
Nós temos de trabalhar para os números. O DN não passou por sua livre vontade para um jornal online, mas porque os números assim o conduziram. Eu não sou defensor de que a nossa profissão tenha de ser subvencionada; também não sou defensor de que isto tenha de se transformar numa gigantesca ONG que vive de angariações de fundos. Esta não deixa de ser uma atividade económica. De preferência, uma atividade económica rentável, porque não há o exercício desta profissão em défice. Em empresas falidas não há jornalismo forte e não há uma democracia forte se não houver jornalismo forte. Um jornalista que estiver como diretor de informação tem de ter a noção disso. Sobretudo numa televisão generalista, temos de entender que há diversos públicos com diversos motivos de interesse. Não é um produto de supermercado porque tem esta função específica na construção da sociedade.

Dizia ao DN, em relação aos telejornais e à informação televisiva, que temos um impacto muito grande no comportamento das pessoas e nas transformações sociais. Um programa da Cristina ou um programa do Manuel Luís Goucha tem tanto ou mais impacto...
Tem impacto, não sei se tem mais. Não tem tanta audiência, pelo menos, porque à noite há muito mais gente a ver televisão, mas tem impacto. Nós próprios temos de fazer uma reflexão sobre se conteúdos que são claramente de informação e estão em espaços de entretenimento não devem ser tutelados pela informação. Porque aí há regras e há responsabilidades.

O que achou da resposta da ERC a caso de Mário Machado?
Ainda não a li, mas achei normal. Era o esperado, e achei corajosa, porque aquilo que estávamos a falar dos políticos também verificámos muitas vezes, no passado recente, com muita gente de instituições reguladoras ou até políticas. Surfa na onda e vai muito a reboque daquilo que acha que é a tendência das redes sociais. Aqui o regulador, por uma vez, teve a capacidade e o discernimento de dizer que o que se passa é o que se passa, a lei é a lei, e foi a lei. Portanto, acho que devemos ouvir outra vez Chico Buarque, aquela música da Geni e o Zepelim, tem-me vindo muito à memória nos últimos dias.

Porque é que reagiu de forma tão intempestiva ao comentário do ministro João Cravinho sobre o programa?
Porque é ministro, não é uma pessoa qualquer. Eu também tenho muitos desabafos para fazer. Eu, se fosse desabafar nas redes sociais tudo o que me passa pela cabeça, nem imagina... mas tenho a noção de que não posso ser descolado da função que tenho.

Mas ele pode achar que é uma questão importante.
E eu posso achar que ele está profundamente errado e que é uma contradição, e assinalar isso. Não estou contra a liberdade de ele exprimir a sua opinião, mas eu falei em várias hipocrisias e essa é uma delas. A única diferença entre a Marine Le Pen e o Mário Machado é que a Marine Le Pen não foi presa, mas os ideais que ela professa são os mesmos, o perigo que ela representa é o mesmo.

Entrevistava a Marine Le Pen?
Eu entrevistava o Hitler se estivesse vivo.

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