Nicarágua. De todas as revoltas, fica-nos a música

Mala de viagem (127). Um retrato muito pessoal da Nicarágua.

Entre o Pacífico e as Caraíbas, onde o continente americano encolhe e a terra é cravejada de vulcões e paisagens sumptuosas, existe a Nicarágua. A primeira ideia que tenho deste país faz parte das minhas memórias de adolescente, quando vi as imagens televisionadas da guerra civil e de um povo martirizado. Por isso, fui ao encontro dos protagonistas da canção de protesto dessa época. Em 1979, Daniel Ortega derrubara a ditadura de Anastasio Somoza Debayle, "El Tachito", apoiado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Porém, de libertador passou a ser visto pela comunidade como totalitarista até à atualidade. Na Nicarágua, as canções de protesto impuseram-se como vozes-de-fundo das marchas de protesto corridas a tiro antes da Revolução Sandinista e, mais recentemente, contra Ortega. Algumas das canções continham indisfarçáveis apelos às armas e foram eixos de conduta para a revolução. Designadamente, Carlos Mejía Godoy escreveu, nos anos 70, a canção "Vivirás Monimbó", em recohecimento à sublevação do bairro indígena Monimbó contra Somoza, mas agora a canção foi renomeada "Adelante Monimbó" e tornou-se num dos hinos dos opositores a Ortega. Aliás, também a frase "Que se rinda tu madre" (Que se renda a tua mãe) é, talvez, a mais usada nas manifestações na Nicarágua nos últimos tempos, resgatada do último grito do poeta nicaraguense Leonel Rugama, assassinado quando lutava nas ruas de Manágua contra as forças do ditador Somoza. Neste contexto, Carlos Mejia Godoy deixou a Nicarágua e foi residir em Espanha, logo após o falecimento do general Francisco Franco, devido à repressão política somozista a partir da segunda metade da década de 1970. Porém, no verão de 1979, retornou à Nicarágua para apoiar a FSLN, que governou desde 19 de julho. Após a tomada do poder pelos sandinistas, criou, juntamente com o seu irmão Luís Enrique e outros nicaraguenses, a Fundação Mejía Godoy, uma organização civil que visa contribuir para o desenvolvimento cultural e humano do país. Só que o rumo dos acontecimentos mudou o comportamento deste e de outros ex-sandinistas. Desde 2018, Carlos vive na Costa Rica e é um dos críticos mais ferozes do presidente Ortega, e, em 2021, condenou uma proposta de lei que declararia as canções da Guarda Nacional da Nicarágua como Património Nacional, considerando-a confiscatória de seu trabalho. Portanto, é curioso verificar que os mesmos compositores e cantores nicaraguenses tenham mudado de opinião, ou seja, na sequência da esperança e da desilusão do povo. Assim, neste mundo em guerra e em todas as revoltas, de direita, de esquerda, de todos os lados, o que sobra é a música. "Que toquen los sones de liberación" (Deixem tocar os sons da libertação) é um dos versos da canção de Carlos Mejía Godoy, que evoca o feito de 1978 durante a insurreição popular. Porém, a canção mudou de versos: "Han pasado cuarenta años/ De aquellos días de gloria/ Y se repite la historia/ La masacre de la juventud/ Han pasado cuarenta años/ No aprendimos la lección/ El pueblo no se olvida/ De tanta perfídia/ De tanta traición./ Adelante Monimbó!" (Quarenta anos se passaram/ Daqueles dias de glória/ E a história repete-se/ O massacre da juventude/ Quarenta anos se passaram/ Nós não aprendemos a lição/ A cidade não é esquecida/ De tanta perfídia/ De tanta traição/ Avante Monimbó!). Entretanto, o povo continua a cantar para turista ouvir: "Nicaragua Mía", de Tino López Guerra para a interpretação de Camerata Bach: "Con un pedazo de cielo/ Mi Nicaragua se formó,/ Por eso es lindo este suelo:/ El suelo donde nací yo." (Com um pedaço de céu/ A minha Nicarágua se formou/ Por isso é lindo este solo:/ O solo onde eu nasci). E assim se deslembra o resto...

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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