Nesta loja de Lisboa os candeeiros são relíquias preciosas

Pelas mãos de dois irmãos proprietários de uma pequena loja de reparação de candeeiros nos Anjos, em Lisboa, passam peças de palácios do Estado, museus e teatros, e de casas particulares, heranças de família ou relíquias que agora pertencem a figuras ilustres. É o caso do candeeiro a petróleo do <em>designer </em>francês Christian Louboutin.
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A arte requer uma rara combinação de talentos. O candeeiro é fotografado, desenhado, filmado de maneira a fixar o mais pequeno detalhe. É desmanchado, pingente a pingente, alfinete (pequeno prego) a alfinete, para ser lavado, recuperado, polido nem de mais nem de menos. Por fim, com a precisão da pinça, é edificado de novo, eletrificado de fresco, devolvido ao brilho perdido, recriado o intrincado e fino croché original no caso dos lustres mais requintados.

Ao n.º 35 C da Rua Palmira, em Lisboa, chegam pedidos de museus, ministérios, teatros, cinemas, hotéis. De palacetes e outras residências de ilustres e mediáticos que recorrem à pequena loja no centro do bairro dos Anjos, raridade na capital portuguesa, especialista em eletrificar e reparar candeeiros.

Fundada em 1970, com o nome Rolarte - Lustres e Candeeiros Modernos, seria rebatizada no princípio do século por Maximiano Rola, o fundador. Ficaria a chamar-se Hospital dos Candeeiros.

Maximiano Rola nasceu a 14 de julho de 1924, numa aldeia do concelho de Tomar. Filho de um mineiro, ficou órfão de pai aos 4 anos. Aos 11 já trabalhava com a enxada. Não se rendeu e, aos 17, trabalhava numa mercearia. O gosto pelo vidro e pela luz chegaria muito depois, perto de completar meio século de vida. Tornar-se ia uma paixão. Próspera.

Para a personalização de cada peça contribuía a mulher. Pouco a pouco, Gabriela montou um ateliê de onde saíram centenas de abat-jours por medida, feitos e, em alguns casos, pintados à mão. Patriarca da família, hoje com 80 anos, guarda orgulhosas fotografias dos melhores exemplares.

Maria Eugénia e Messias Rola, os herdeiros, seguiriam as pisadas do pai, falecido em 2008. No início, a custo. "Quando era miúda, estar na loja era uma chatice", recorda Maria Eugénia, de 48 anos. Tinha um mês de idade quando abriu a Rolarte, passou a infância a brincar entre bolas, campânulas e outros objetos de vidro. Sempre sob o aviso "cuidado, olha que se parte".

Com o curso da António Arroios, Maria Eugénia desenha, desmancha, limpa e arama de novo as peças. Alguns dos seus clientes vão já na terceira geração. Candeeiros intervencionados pelo pai estão, décadas depois, nas suas mãos e nas do irmão, mais novo três anos. Messias solda, repara, eletrifica, monta de novo.

Tal como a irmã, "não gostava disto". Conta: "O meu pai chamava-me para ver o que estava a fazer. Para mim era uma enorme seca." Teve por legos as roscas, os parafusos e as porcas. Deixou a escola mal completou o secundário. Foi trabalhar com o pai. "Hoje, adoro candeeiros e luz."

São Carlos, tribunal e segredos

No dia da nossa visita, ao início da tarde, tinham acabado de chegar do Teatro São Carlos, onde foram fazer o levantamento e diagnóstico de algumas peças. Sobre uma mesa estão já, polidos, reeletrificados e prontos para entrega, quatro castiçais de quatro braços cada, espólio do Tribunal da Relação de Lisboa. Do teto da loja pendem candeeiros, sobretudo lustres de cristal e latão. O balcão de madeira é o original. Em forma de L, divide um corredor de prateleiras com acessórios elétricos da zona de atendimento. Numa das estantes pontifica a fotografia emoldurada do fundador e da sua bicicleta.

Maximiano Rola era homem de paixões. Pelas motos, pela caça, pelo ciclismo - em 1946, com 22 anos, completou pela primeira vez uma Volta a Portugal, ficando em segundo lugar, representou depois o Sporting e também o Benfica, foi campeão ibérico e campeão nacional por equipas, ficou conhecido, conforme registo em jornais da época, como o "Clarke Gable do ciclismo" graças ao bigode galã, que a fotografia comprova. A fotografia, a primeira paixão de Maximiano.

É nas entranhas da loja - corredor estreito que desemboca nas traseiras do prédio - que Maria Eugénia e Messias tratam das reparações que é possível ali fazer (normalmente são feitas nos próprios locais). Uma babel de fios, vários tipos de arame, alicates sortidos, a maioria de ponta redonda, pinças várias. Em móveis gastos, pequenas gavetas guardam pingentes, pedras, parafusos, florões, tachas, imprimidos (pequenos discos em latão), pregos. E segredos.

Segredos que guardam os candeeiros: "Há tempos encontrámos um cheque, vinha enrolado num módulo de madeira. Um cheque assinado de um banco que já não existia na altura", conta Messias. Também tiras de papel, rasgadas de livros de merceeiro dos anos 1920, com anotações em italiano, e recortes de jornais do princípio do século, que serviam de talos, numa época em que "a praga da cola" não era opção.

Lustres, a joia

"A praga da cola", repete Messias" ou os "candeeiros IKEA, plástico colado, impossível de reparar". Lamenta-se. O lustre, "o candeeiro mais requintado e elegante", saiu de moda durante uns anos. Só os clientes conhecedores, na maioria proprietários de peças de grande porte, se mantiveram fiéis. De resto, "as pessoas arranjavam todo o tipo de desculpas para os deitarem fora. Davam-nos. Preferiam os do IKEA ou os de halogéneo."

Como todas as modas, esta também voltou. Não só os candelabros: "Material obsoleto, que pensávamos que nunca mais iria vender-se, está de novo na moda, espalhado por muitos bares de Lisboa", diz Messias.

Maria Eugénia anda à volta de um lustre imponente proveniente de um palacete particular. "Sobretudo em lustres, todos os arranjos dão muito trabalho e muitas vezes não contabilizamos as horas. Se o fizéssemos os preços seriam incomportáveis." Apesar disso, alguns deles atingem mais de um milhar de euros.

Louboutin e São Jorge

Quanto custou a Louboutin a reparação de um antigo candeeiro a petróleo é segredo. O designer francês descobriu o Hospital dos Candeeiros através da arquiteta contratada para tratar da casa do bairro da Graça. A fotografia da peça está fechada a sete chaves. "Muitas vezes, a fotografia apanha partes da casa. E, portanto, estamos obrigados a uma reserva que cumprimos com escrúpulo", diz Messias.

A maior parte do trabalho de limpeza e recuperação é feita nas residências dos clientes, obrigando por vezes a andaimes. Os irmãos usam panos de microfibras, produtos de limpeza ecológicos, protetores estofados, kit de cristais para reposição e fios elétricos. Em casos especiais, o trabalho obriga a um seguro adicional.

"Gosto de design, da forma das pedras, das peças, desenvolvi esse gosto ao longo dos anos. Gosto muito de arte." Criou o gosto, diz, "nas visitas a casas de clientes. Aprendi a conviver com coisas muito bonitas, peças de encantar". Por isso, retomou a escola e fez a António Arroio, formações em História de Arte e, um gosto antigo, Técnicas de Joalharia. Mas foi com o pai e outros mestres que aprendeu tudo o que sabe sobre candeeiros. Maximiano trabalhava "com os melhores quer na fundição quer na reparação de madeiras. Infelizmente essas oficinas foram fechando uma a uma". Oficinas e belíssimas fábricas de vidro, por exemplo. "Deixámos de fazer o vidro duplo, como tão bem se fazia na Fábrica das Gaivotas, que fechou com muitos globos de vidro opalino lá dentro." E, pior, "o conhecimento, em várias áreas, perdeu-se".

A loja da rua Palmira "quer manter a qualidade". Messias dá como exemplo "as suspensões dos candeeiros do Cinema São Jorge". O cliente ficou de tal maneira satisfeito que há já nova encomenda na calha: "Um candeeiro para a entrada, um trabalho específico que já não há quem faça," diz Messias.

Chuveiradas e fumo

"Reparamos tão bem que os candeeiros ficam prontos a durar mais 30 anos. Temos de rever o conceito", brinca Messias. "Ainda hoje recebemos abat-jours feitos cá em casa há 20 ou 30 anos, que chegam sem um rasgão, apenas escurecidos pelo pó." Peças que resistiram a "empregadas de limpeza, crianças e gatos".

Os lustres são esponjas. "Absorvem tudo. Por eles percebemos se o proprietário é fumador. Os pingentes ficam gordurosos e ganham cor. Ninguém diria que são transparentes."

Ao tabaco juntam-se as lâmpadas incandescentes. Queimam os casquilhos de forma irrecuperável e são colocadas raramente de forma correta - com as duas mãos, uma segurando a lâmpada e outra o casquilho.

Pior, porém, são os produtos que aceleram a oxidação dos metais. "Líquidos ou sprays ditos de limpeza que atacam e corroem os arames de ligação, deixando o candeeiro em risco de se desmoronar." Materiais de tal forma abrasivos que "queimam o cristal", dano irreversível. "São casos clássicos, que nos chegam com muita frequência."

Na dúvida, deve usar-se água morna e sabão - mas, atenção, é suposto lavar peça a peça. "Há quem chegue aqui aflito porque meteu o lustre numa banheira e lavou-o à chuveirada", conta Messias. Resume: "Há dias em que nos chegam candeeiros em coma. Não sabemos como foram capazes de resistir." E avisa: "Um check-up a tempo pode salvar. Os candeeiros devem ir à revisão de 15 em 15 anos." Para dar outro brilho e nitidez à vida.

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