Estavam separados há muito, mas Dora era a mãe do seu único filho. E o divórcio, doloroso, arrastara-se por mais de um ano. Pela primeira vez, começou a ter pensamentos suicidas. Viajou pelo sul de França, esteve em Marselha e em Paris, reencontrou o amigo Bertolt Brecht, mas nada disso evitou a crise: a hiperinflação da República de Weimar devorara as poupanças com que o seu pai o sustentava, Hitler aproximava-se do poder e, à beira de completar 40 anos, Walter Benjamin tinha as portas da academia fechadas, vivendo de colaborações ocasionais na imprensa e na rádio. Aos mais próximos, confessava-se "cansado de lutar". As comemorações do ano Goethe trouxeram-lhe alguns trabalhos, artigos encomendados pelo Frankfurter Zeitung, graças aos quais pôde custear a viagem. A decisão de partir, tomada em Março de 1932, fora súbita e repentina. Em 7 de Abril, saiu de Hamburgo a bordo do Catania, o mesmo navio mercante que anos antes, em 1925, o levara a Nápoles, com escala em Espanha, onde visitou Córdova e Sevilha. Agora, regressava. Ibiza era então a ilha mais pobre do arquipélago das Baleares. Talvez por isso, despertara a curiosidade de um punhado de intelectuais e artistas vindos de fora, que aí procuraram a autenticidade há muito perdida nas suas terras de origem. O filólogo Walther Spelbrink, os zoólogos Wilhelm Schreitmüller e Otto Koeller, o arqueólogo Adolf Schulten, o pintor belga Médard Verburgh, o fotógrafo etnográfico José Ortiz Echagüe, os jovens do GATCPAC, um grupo de arquitectos catalães empenhados no levantamento das habitações tradicionais da ilha, todos se precipitaram sobre Ibiza e os seus costumes antigos (entre os membros do GATCPAC, Germán Rodríguez Arias, que mais tarde desenhará o famoso refúgio de Neruda na Isla Negra). Surpreendia-os, acima de tudo, a configuração singular das casas rurais de Ibiza, construções compactas e fechadas sobre si próprias, organizadas em torno de uma divisão rectangular central, o porxo, cuja extrema funcionalidade não era produto de planificação racional mas o resultado natural e espontâneo de uma sabedoria acumulada em muitos séculos de convívio com a terra. Os forasteiros impressionavam-se também com as agruras arcaicas da economia de subsistência, com a quantidade e a variedade de tarefas que cada camponês de Ibiza tinha de desempenhar, de sol a sol. Ainda assim, a amenidade do clima e a tranquilidade do quotidiano faziam com que a sua longevidade fosse maior do que no resto de Espanha e na maior parte da Europa, ponto que também suscitou admiração e fascínio entre os visitantes. Walter Benjamin não escolhera Ibiza por motivos intelectuais ou propósitos etnográficos, como nos explica Vicente Valero em Experiencia y Pobreza, um livro dedicado à permanência do filósofo nessa ilha. As suas razões foram puramente económicas, já que ali conseguia viver, dizia, com um "mínimo europeu de subsistência". Desembarcou na manhã de 19 de Abril de 1932, instalou-se a poucos metros do mar, na baía de Sa Punta des Molí, junto a um velho moinho abandonado. A casa, modesta, não tinha luz eléctrica e águas correntes, nem sequer quarto de banho, e nas traseiras havia um curral de porcos e de cabras - e um pinhal enorme e denso, polvilhado de sabinas. Benjamin tomava banhos de mar ao raiar do dia, pelas sete horas, passava a manhã a escrevinhar e a reler Stendhal, Gide, Proust, a autobiografia de Trotsky e a sua monumental história da revolução russa. À tarde passeava pelo interior da ilha, e o flâneur urbano de Berlim, que às passagens e arcadas parisienses dedicara a sua opus magnum (há pouco editada entre nós, num trabalho notável de João Barrento), foi dando lugar ao caminhante solitário da natureza, o suor no rosto, deslumbrado pela sombra das árvores e pelo canto das cigarras, desejoso de saber o nome das dezassete espécies de figueiras que frutificam nas Baleares. Conheceu Jean Selz, um crítico de arte francês, com quem fumaria haxixe e, mais tarde, ópio; continuou a interessar-se pela astrologia e pelos sonhos, escreveu textos memoráveis, como "Ao Sol", redigido no dia do seu 40.º aniversário. Também ele se deixou encantar pela arquitectura tradicional de Ibiza, pelas suas "casas primordiais", alvíssimas, de onde estavam ausentes materiais como o aço e o vidro, que Benjamin tinha por desprezíveis símbolos da barbárie moderna. Segundo ele, também a capacidade narrativa estava prestes a desaparecer no nosso tempo, ameaçada pelo horror ao tédio. "Quem não se aborrece não sabe narrar", escreveu, descobrindo com alegria que entre os camponeses e os pescadores de Ibiza não se perdera a velha arte de contar histórias. Pressentiu, porém, que sobre aquela frágil Arcádia, exótica e mediterrânica, pairavam já as nuvens do progresso devastador, personificado na figura de Don Rosello, um abastado comerciante local que construíra os primeiros hotéis da ilha, geridos por alemães, com empregados poliglotas e ementas de lagosta. Apesar disso, Benjamin pensou em adiar o regresso a Berlim, já que da Alemanha chegavam notícias alarmantes: as primeiras vitórias eleitorais de Hitler - na Baviera e na Prússia, em Hamburgo, em Württenberg -, incessantes crises políticas, demissões de ministros, confrontos violentos nas ruas, provocados pelas milícias nazis. Uma paixão não correspondida precipitará a partida, rumo a Nice, onde Benjamin pensa seriamente em suicidar-se e chega a redigir um testamento e uma carta de despedida. Acorrem-lhe ao espírito, vezes sem conta, as palavras de Horácio, que inscreveu no seu diário: de nada vale fugirmos da pátria se formos incapazes de fugir de nós próprios. Ou a inscrição medieval num relógio de sol de Ibiza, que também cativará Cioran: Ultima multis - "para muitos, o último dia"..via GIPHY. Walter Benjamin regressou a Ibiza no ano seguinte, em Abril de 1933, mas foi incapaz de encontrar aí a tranquilidade de outrora. Na Alemanha, o seu irmão George fora detido, Dora, a ex-mulher, perdera o emprego e o seu filho Stefan, com 15 anos, além da ascendência judaica decidira abraçar a militância comunista. O dinheiro rareava, muitos dos seus amigos tinham entretanto abandonado a ilha. De aspecto paupérrimo e ar andrajoso, Walter Benjamin, um dos mais originais e influentes pensadores do século XX, começou a ser conhecido entre os locais como es miserable. Na penúria completa, decide ir viver para uma casa em construção, praticamente sem mobília e conforto algum, embriaga-se e fuma ópio com Jean Selz, contrai malária, mergulha em depressão profunda. É resgatado do abismo por algumas amizades recentes, como a do neto de Paul Gauguin, e por uma nova e arrebatadora paixão, a pintora holandesa Toet ten Cate. Abandona a ilha no seu encalço, gravemente doente, e pensa recomeçar a vida em Paris junto dela, mas o sonho desfaz-se por diversas causas, amorosas e logísticas. Sucedem-se projectos vários, todos escapistas: partir para a Palestina, onde se encontrava Gershom Scholem, o seu maior amigo, fixar-se na casa de Brecht na Dinamarca, fugir para sempre da Alemanha e do espectro do nazismo. Entretanto, a ilha acolhera novos visitantes: Albert Camus, Jacques Prévert, Rafael Alberti, Drieu La Rochelle, muitos outros. No Verão de 1936, no decurso da guerra civil, seria ocupada por tropas italianas a mando do fascista Arconovaldo Rossi, os famigerados "dragões da morte", que nessa acção contariam com o apoio de duas companhias da Legião de Maiorca. Com a Segunda Guerra, Ibiza mergulhou de novo no esquecimento e na obscuridade, até ser redescoberta pelos hippies e pelo turismo de massas na década de 60. Hoje está irremediavelmente desfigurada, afogada pelo betão, sendo, pois, ilustrativa metáfora da contemporaneidade, de um tempo que, à custa de tanto querer descobrir o "autêntico", acaba por destruí-lo. Foram os turistas intelectuais dos anos 30, que afluíram a Ibiza em busca da "tradição" e do "natural" nas casas dos camponeses, quem abriu caminho aos hotéis e aos blocos de apartamentos, e às avenidas feéricas, alumiadas a néon. Com o eclodir da guerra, Walter Benjamin, na altura a morar em Paris, é levado para um campo de detenção francês, por falta de documentos válidos. Pouco depois, internam-no no centro de trabalhadores voluntários de Clos Saint-Joseph, nas imediações de Nevers. Será libertado graças a amigos franceses influentes, procurando então sair do país e rumar aos Estados Unidos. A travessia dos Pirenéus, feita através da "rota Lister", será conduzida por Lisa Fittko, uma judia húngara que heroicamente se dedicava a fazer passar clandestinos pela fronteira franco-espanhola. A caminhada inicia-se na manhã de 26 de Setembro de 1940, a partir de Banyuls-sur-Mer. Ao chegar à fronteira, as autoridades franquistas exigem-lhe um visto de entrada em Espanha; como não o tem, negam-lhe a passagem, e Benjamin fica retido em território francês. Nessa noite, num quarto de hotel de Portbou, ingere uma dose fatal de morfina.
Estavam separados há muito, mas Dora era a mãe do seu único filho. E o divórcio, doloroso, arrastara-se por mais de um ano. Pela primeira vez, começou a ter pensamentos suicidas. Viajou pelo sul de França, esteve em Marselha e em Paris, reencontrou o amigo Bertolt Brecht, mas nada disso evitou a crise: a hiperinflação da República de Weimar devorara as poupanças com que o seu pai o sustentava, Hitler aproximava-se do poder e, à beira de completar 40 anos, Walter Benjamin tinha as portas da academia fechadas, vivendo de colaborações ocasionais na imprensa e na rádio. Aos mais próximos, confessava-se "cansado de lutar". As comemorações do ano Goethe trouxeram-lhe alguns trabalhos, artigos encomendados pelo Frankfurter Zeitung, graças aos quais pôde custear a viagem. A decisão de partir, tomada em Março de 1932, fora súbita e repentina. Em 7 de Abril, saiu de Hamburgo a bordo do Catania, o mesmo navio mercante que anos antes, em 1925, o levara a Nápoles, com escala em Espanha, onde visitou Córdova e Sevilha. Agora, regressava. Ibiza era então a ilha mais pobre do arquipélago das Baleares. Talvez por isso, despertara a curiosidade de um punhado de intelectuais e artistas vindos de fora, que aí procuraram a autenticidade há muito perdida nas suas terras de origem. O filólogo Walther Spelbrink, os zoólogos Wilhelm Schreitmüller e Otto Koeller, o arqueólogo Adolf Schulten, o pintor belga Médard Verburgh, o fotógrafo etnográfico José Ortiz Echagüe, os jovens do GATCPAC, um grupo de arquitectos catalães empenhados no levantamento das habitações tradicionais da ilha, todos se precipitaram sobre Ibiza e os seus costumes antigos (entre os membros do GATCPAC, Germán Rodríguez Arias, que mais tarde desenhará o famoso refúgio de Neruda na Isla Negra). Surpreendia-os, acima de tudo, a configuração singular das casas rurais de Ibiza, construções compactas e fechadas sobre si próprias, organizadas em torno de uma divisão rectangular central, o porxo, cuja extrema funcionalidade não era produto de planificação racional mas o resultado natural e espontâneo de uma sabedoria acumulada em muitos séculos de convívio com a terra. Os forasteiros impressionavam-se também com as agruras arcaicas da economia de subsistência, com a quantidade e a variedade de tarefas que cada camponês de Ibiza tinha de desempenhar, de sol a sol. Ainda assim, a amenidade do clima e a tranquilidade do quotidiano faziam com que a sua longevidade fosse maior do que no resto de Espanha e na maior parte da Europa, ponto que também suscitou admiração e fascínio entre os visitantes. Walter Benjamin não escolhera Ibiza por motivos intelectuais ou propósitos etnográficos, como nos explica Vicente Valero em Experiencia y Pobreza, um livro dedicado à permanência do filósofo nessa ilha. As suas razões foram puramente económicas, já que ali conseguia viver, dizia, com um "mínimo europeu de subsistência". Desembarcou na manhã de 19 de Abril de 1932, instalou-se a poucos metros do mar, na baía de Sa Punta des Molí, junto a um velho moinho abandonado. A casa, modesta, não tinha luz eléctrica e águas correntes, nem sequer quarto de banho, e nas traseiras havia um curral de porcos e de cabras - e um pinhal enorme e denso, polvilhado de sabinas. Benjamin tomava banhos de mar ao raiar do dia, pelas sete horas, passava a manhã a escrevinhar e a reler Stendhal, Gide, Proust, a autobiografia de Trotsky e a sua monumental história da revolução russa. À tarde passeava pelo interior da ilha, e o flâneur urbano de Berlim, que às passagens e arcadas parisienses dedicara a sua opus magnum (há pouco editada entre nós, num trabalho notável de João Barrento), foi dando lugar ao caminhante solitário da natureza, o suor no rosto, deslumbrado pela sombra das árvores e pelo canto das cigarras, desejoso de saber o nome das dezassete espécies de figueiras que frutificam nas Baleares. Conheceu Jean Selz, um crítico de arte francês, com quem fumaria haxixe e, mais tarde, ópio; continuou a interessar-se pela astrologia e pelos sonhos, escreveu textos memoráveis, como "Ao Sol", redigido no dia do seu 40.º aniversário. Também ele se deixou encantar pela arquitectura tradicional de Ibiza, pelas suas "casas primordiais", alvíssimas, de onde estavam ausentes materiais como o aço e o vidro, que Benjamin tinha por desprezíveis símbolos da barbárie moderna. Segundo ele, também a capacidade narrativa estava prestes a desaparecer no nosso tempo, ameaçada pelo horror ao tédio. "Quem não se aborrece não sabe narrar", escreveu, descobrindo com alegria que entre os camponeses e os pescadores de Ibiza não se perdera a velha arte de contar histórias. Pressentiu, porém, que sobre aquela frágil Arcádia, exótica e mediterrânica, pairavam já as nuvens do progresso devastador, personificado na figura de Don Rosello, um abastado comerciante local que construíra os primeiros hotéis da ilha, geridos por alemães, com empregados poliglotas e ementas de lagosta. Apesar disso, Benjamin pensou em adiar o regresso a Berlim, já que da Alemanha chegavam notícias alarmantes: as primeiras vitórias eleitorais de Hitler - na Baviera e na Prússia, em Hamburgo, em Württenberg -, incessantes crises políticas, demissões de ministros, confrontos violentos nas ruas, provocados pelas milícias nazis. Uma paixão não correspondida precipitará a partida, rumo a Nice, onde Benjamin pensa seriamente em suicidar-se e chega a redigir um testamento e uma carta de despedida. Acorrem-lhe ao espírito, vezes sem conta, as palavras de Horácio, que inscreveu no seu diário: de nada vale fugirmos da pátria se formos incapazes de fugir de nós próprios. Ou a inscrição medieval num relógio de sol de Ibiza, que também cativará Cioran: Ultima multis - "para muitos, o último dia"..via GIPHY. Walter Benjamin regressou a Ibiza no ano seguinte, em Abril de 1933, mas foi incapaz de encontrar aí a tranquilidade de outrora. Na Alemanha, o seu irmão George fora detido, Dora, a ex-mulher, perdera o emprego e o seu filho Stefan, com 15 anos, além da ascendência judaica decidira abraçar a militância comunista. O dinheiro rareava, muitos dos seus amigos tinham entretanto abandonado a ilha. De aspecto paupérrimo e ar andrajoso, Walter Benjamin, um dos mais originais e influentes pensadores do século XX, começou a ser conhecido entre os locais como es miserable. Na penúria completa, decide ir viver para uma casa em construção, praticamente sem mobília e conforto algum, embriaga-se e fuma ópio com Jean Selz, contrai malária, mergulha em depressão profunda. É resgatado do abismo por algumas amizades recentes, como a do neto de Paul Gauguin, e por uma nova e arrebatadora paixão, a pintora holandesa Toet ten Cate. Abandona a ilha no seu encalço, gravemente doente, e pensa recomeçar a vida em Paris junto dela, mas o sonho desfaz-se por diversas causas, amorosas e logísticas. Sucedem-se projectos vários, todos escapistas: partir para a Palestina, onde se encontrava Gershom Scholem, o seu maior amigo, fixar-se na casa de Brecht na Dinamarca, fugir para sempre da Alemanha e do espectro do nazismo. Entretanto, a ilha acolhera novos visitantes: Albert Camus, Jacques Prévert, Rafael Alberti, Drieu La Rochelle, muitos outros. No Verão de 1936, no decurso da guerra civil, seria ocupada por tropas italianas a mando do fascista Arconovaldo Rossi, os famigerados "dragões da morte", que nessa acção contariam com o apoio de duas companhias da Legião de Maiorca. Com a Segunda Guerra, Ibiza mergulhou de novo no esquecimento e na obscuridade, até ser redescoberta pelos hippies e pelo turismo de massas na década de 60. Hoje está irremediavelmente desfigurada, afogada pelo betão, sendo, pois, ilustrativa metáfora da contemporaneidade, de um tempo que, à custa de tanto querer descobrir o "autêntico", acaba por destruí-lo. Foram os turistas intelectuais dos anos 30, que afluíram a Ibiza em busca da "tradição" e do "natural" nas casas dos camponeses, quem abriu caminho aos hotéis e aos blocos de apartamentos, e às avenidas feéricas, alumiadas a néon. Com o eclodir da guerra, Walter Benjamin, na altura a morar em Paris, é levado para um campo de detenção francês, por falta de documentos válidos. Pouco depois, internam-no no centro de trabalhadores voluntários de Clos Saint-Joseph, nas imediações de Nevers. Será libertado graças a amigos franceses influentes, procurando então sair do país e rumar aos Estados Unidos. A travessia dos Pirenéus, feita através da "rota Lister", será conduzida por Lisa Fittko, uma judia húngara que heroicamente se dedicava a fazer passar clandestinos pela fronteira franco-espanhola. A caminhada inicia-se na manhã de 26 de Setembro de 1940, a partir de Banyuls-sur-Mer. Ao chegar à fronteira, as autoridades franquistas exigem-lhe um visto de entrada em Espanha; como não o tem, negam-lhe a passagem, e Benjamin fica retido em território francês. Nessa noite, num quarto de hotel de Portbou, ingere uma dose fatal de morfina.