Uma das melhores decisões da minha vida foi acabar o curso de Direito e concluir que não confiava neste sistema para gastar a minha vida naquilo - a "justiça"..Embora as cadeiras essenciais do curso fossem as dos grandes pilares teóricos, a prática demonstra todos os dias que na justiça pesa brutalmente o processo, seja civil ou criminal. Todos os dias o sistema judicial perde batalhas decisivas por causa disso. E decidiu vingar-se..Por isso nos fomos habituando a que a justiça seja um espetáculo de televisão. Jornalistas à porta dos tribunais que são o alter ego dos jornalistas à porta dos estádios. Entra gente, sai gente, alguns comentam, outros esbracejam. Se fossem dias de sentenças, ainda vá. Havia "jogo". Mas não: são apenas "treinos". Fogueiras inquisitoriais do nosso tempo..Estamos já na fase em que as audições simples (para averiguar se alguém vai ou não ser sujeito a uma investigação) passaram a ser também mediatizadas. Ou seja, ainda não há nada de verdadeiramente jurídico, mas mediaticamente já temos um caso..O processo é este: basta uma denúncia anónima para os tribunais, em regra, não a poderem ignorar. E uma simples inquirição, mesmo que para encerrar a denúncia, se for contra alguém conhecido, significa imediatamente uma "investigação". Logo, mediaticamente já é um caso. Ainda o cidadão não é sequer arguido e já é "culpado"..Note-se que, mesmo em casos de grande impacto social e com danos à vista, mesmo que se seja arguido, isso significa que tem de haver presunção de inocência até ao julgamento (quantas vezes não se passa sequer da fase instrução por falta de provas)..Por fim, se tudo isto acaba em inocência, ninguém tira àquele cidadão os anos de presunção pública de culpa. E isso é verdadeiramente intolerável, fundamentalmente por ter sido posto nesta posição de forma intencional..Disse nesta semana o novo diretor da Polícia Judiciária: os media não podem chegar aos locais de recolha de provas antes das polícias. Disse bem. Não sei se os cidadãos têm noção do ridículo a que se chegou. Um exemplo: há aproximadamente um ano, num dia comum, a RTP foi abalada pela chegada da CMTV à porta - antes de chegar um pelotão de sete procuradores para levantar documentos. Qual era o tema? Um processo contra um ex-autarca que em 2012 (!!!) teria ajudado a produzir um programa e recebido umas centenas de euros por outra via. Não sabemos se é verdade, mas na altura do julgamento poderemos saber. Só que não basta. Sete procuradores e uma televisão em direto para levantar uns documentos dão um grau de importância ao assunto que nenhuma absolvição realmente elimina. Seguiu-se a esta televisão, pavlovianamente, todas as outras, e de seguida quase todos os media com um "última hora" sobre o mesmo tema. O nome do visado vai ficar para sempre manchado..Repare-se: os tribunais têm um papel dificílimo - provar um crime. Todos os cidadãos ficam reconhecidos por esse esforço e esse sentido de averiguação da verdade, diminuição da corrupção ou crime económico, etc. É importante que o sistema continue nessa missão. Mas a hipótese de se falhar - e não se condenarem os arguidos - não pode ter um comportamento tático de se fornecerem aos jornais do costume as supostas provas (sem julgamento) para os irem expiando, haja ou não condenação..Não basta o diretor da Polícia Judiciária querer coesão nos seus homens para garantir o sigilo das operações. É necessário que todo o sistema tenha dignidade e não pratique diariamente a violação deliberada do segredo de justiça. Porque quando as inquirições, escutas e provas vão parar aos media sistematicamente, temos de nos perguntar porquê. O que ganha quem passa essas informações? Como acreditar num sistema assim? Não é isto igualmente corrupção para troca de favores nos media?.Depois do 25 de Abril fomos capazes de quase tudo, exceto de uma coisa essencial: confiar num sistema de justiça eficaz. Hoje já não se trata de confiar, sequer. Há uma ameaça sobre todos. Não pelos julgamentos. Demasiada gente colabora ativamente em pré-julgamentos sumários para justificar e promover as suas carreiras.