Não ouvir não é o melhor remédio

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Ainda não houve a tomada de posse do novo governo do PS e já há polémicas com os vice-presidentes da Assembleia da República. Diogo Pacheco de Amorim, deputado eleito pelo círculo do Porto do Chega, está no centro do furacão. Foi o escolhido por André Ventura, líder do partido, para a mesa do parlamento, mas é improvável que seja eleito. É um dos principais ideólogos do Chega, tem 73 anos e era, até ser eleito deputado nestas eleições, o assessor parlamentar e ex-vice-presidente do Chega.

A escolha de Ventura promete ser um longo braço-de-ferro, já que poderá ser chumbado pela esquerda, ou seja, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda. Jerónimo de Sousa já deixou bem claro: "Não será com votos do PCP que o Chega vai ter esse lugar." O voto é secreto e nominal. Há que aguardar.

Ditam as regras que na Assembleia da República os quatro partidos mais votados podem indicar um nome, mas tem de ser aprovado por 116 votos. Caso haja um impasse, o episódio não será inédito já que, em 1995, Nuno Krus Abecasis, do CDS-PP, foi chumbado por três vezes para a vice-presidência do parlamento. Acabou por tomar ele próprio a iniciativa de retirar a candidatura e só três anos mais tarde, à quarta vez, o deputado centrista foi eleito vice-presidente. Também em 2011, Fernando Nobre, apontado pelo PSD, não reuniu os votos necessários e falhou a eleição, não por uma mas por por duas vezes, para a presidência da Assembleia da República. Para o lugar foi eleita Assunção Esteves.

A mesa da assembleia está envolta num processo de reconfiguração controverso. O Chega já admite apresentar alternativas, mas também garante que recorrerá ao Tribunal Constitucional caso o partido não tenha um vice-presidente no parlamento. Para quê tanto ruído se o povo votou e é quem mais ordena nas urnas, e se o regimento da Assembleia da República é claro? Alimentar conflitos institucionais como este tende a empolar e a fazer crescer ainda mais a extrema-direita em Portugal.

É um erro seguir uma estratégia de avestruz, de colocar a cabeça na areia. Mais do que nunca a cabeça, os olhos, os ouvidos e todos os sentidos têm de estar abertos e bem atentos ao que se está a passar à nossa volta, à forma como a sociedade está a mudar e a distanciar-se da maneira de fazer a política tradicional. A decisão de António Costa, primeiro-ministro, de se reunir com representantes da sociedade civil onde se incluem os parceiros sociais e os partidos, nesta semana e até ao dia 15, mas recusar ouvir o Chega é não aceitar a realidade e a decisão de milhares de portugueses que elegeram os 12 deputados daquele partido e é uma forma de alimentar o crescimento daquela que é já a terceira força política.

Se havia uma linha vermelha a traçar era antes das eleições e durante toda a campanha eleitoral. E Costa traçou essa linha, ao contrário de Rio. Esse era o momento próprio para estancar a fuga de eleitorado para os extremos. Passadas as eleições, agora há que respeitar o voto dos portugueses. E respeitar o voto de todos, mesmo daqueles que, por opção ou voto de protesto, escolheram o Chega. Mais: se o partido reúne os descontentes o melhor será mesmo entendê-los, ouvi-los. Mas para tal vai ser preciso também conhecer o Chega, escutá-lo, ler-lhe a alma se necessário e perceber como chegar aos eleitores que conseguiu capturar. Não ouvir não é o melhor remédio.

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