O Brasil de Cafuringa, Fumanchu e Odvan

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Um jovem guarda-redes revelado pelo Flamengo, Hugo, está dividindo a crónica desportiva do Brasil. Alguns jornalistas referem-se a ele como Hugo Souza, seu nome de registo. Outros preferem chamá-lo de Neneca, uma alcunha de infância. E uma terceira fação, na qual me incluo, prefere que ele atenda apenas por Hugo, simplesmente Hugo, já que não há outros Hugos importantes no atual futebol brasileiro e, se houver, nenhum deles é guarda-redes. Seria uma maneira de evitar essa mania pedante, atualmente em voga no Brasil, de chamar os jogadores pelo nome completo, como num cartão-de -visita, e ao mesmo tempo impedir que um grande jogador em potencial, de 21 anos, seja reduzido a um tratamento bobo, quase infantil, como Neneca - corruptela carinhosa de neném, o equivalente brasileiro de bebé.

A tendência a chamar-se os jogadores pelo prenome e pelo nome de família pode explicar-se pela necessidade de diferenciá-los uns dos outros, devido à enorme incidência de diegos, rodrigos, williams, évertons e gabriéis hoje em voga no país e, em consequência, nos clubes de futebol - no Brasil pode dar-se qualquer nome aos filhos, o que faz que certos nomes fiquem subitamente na moda e se repitam aos milhões. Esse foi um dos motivos pelos quais, em 2019, o vitoriosíssimo Flamengo, treinado por Jorge Jesus, foi muitas vezes formado por Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio e Pablo Marí; Willian Arão, Éverton Ribeiro e Diego Ribas; De Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabriel Barbosa. Dez entre os onze tinham nomes compostos - como, aliás, também o treinador Jorge Jesus.

Alguns comentadores queixam-se, com razão, de que isto está acabando com uma deliciosa tradição do futebol brasileiro, a das alcunhas dos jogadores, que contribuíam para que eles fossem amados até pelos adeptos de outros clubes que não os deles. Muitas tornaram-se tão familiares que deixámos de pensar nelas como alcunhas. Pelé, por exemplo, é uma alcunha - seu nome verdadeiro é Edson. O nome Pelé não significa nada e, antes do próprio, ninguém se chamou assim. Mas basta ouvirmos a palavra mágica - Pelé! - para sabermos de quem se trata (e, por falar nisso, ele está completando 80 anos neste mês). Garrincha, ao contrário, é o nome de um esperto passarinho que vive ou vivia nas florestas brasileiras. Eram as garrichas ou garrinchas, no feminino. Não sei se ainda temos garrinchas à solta (não vejo uma há 60 anos), mas também não se pode garantir que, sob Jair Bolsonaro, continuará a haver florestas no Brasil.

Ao contrário da norma europeia de tratar os jogadores por seus nomes de família - Cristiano Ronaldo é uma exceção, pois não? -, no Brasil a alcunha é que sempre foi a regra. E com ela batizaram-se jogadores extraordinários. Aqui vão alguns exemplos. A maioria dos nomes citados será remota ou desconhecida em Portugal, mas saiba o leitor que todos jogaram nos grandes clubes brasileiros, de 1930 até hoje, e muitos chegaram à seleção.

Apenas entre as alcunhas como Garrincha, referentes a aves ou animais, tivemos Abelha, Canário, Formiga, Biguá, Tatu, Onça, Galo, Gato, Lagarto, Pavão, Pintinho, Pato, Ganso, Walter Minhoca e, carinhosamente, Bodinho. Entre as alcunhas inexplicáveis, mas fascinantes, tivemos Quarentinha, Preguinho, Tesourinha, Teleco, Cocada, Babão, Baiaco, Alfinete, Pirica, Boiadeiro, Fumanchu, Carvoeiro, Sicupira, Caçapava, Camanducaia, Manga, Manguito, Jaguaré, Pinga, Cafu, Cafunga, Cafuringa, Bujica, Amendoim e milhares de outras, além de uma profusão de Carecas, que eu saiba, nenhum deles calvo. E um antigo zagueiro do Fluminense, José Pereira da Silva, chamou-se, maravilhosamente, Cento e Nove.

Entre as alcunhas que talvez significassem alguma coisa - como, quem sabe, uma semelhança ou característica -, houve Pé de Valsa, Tostão, Sapatão, Cabeção, Esquerdinha, Beijoca, Bigode, Foguinho, Manteiga, Filó, Nariz, Índio, Dunga, Alemão, Chinesinho, Espanhol, Itália, Japonês, Paraguaio, Russo, Pintado, Viola, Risada, Charuto, Feitiço, Paulo Cesar Caju e um, falecido há poucos dias, que trazia um apodo quase imperial: Silva, o Batuta - algo assim como Ricardo, Coração de Leão.

Entre as alcunhas que, por se referirem a jogadores duros, decisivos, quase fulminantes, tinham conotação bélica, houve Bacamarte, Foguete, Flecha, Toninho Guerreiro, Valdemar Carabina e o mais famoso, Roberto Dinamite. E, ao contrário destes, entre as alcunhas apenas cómicas e cheias de ternura, tivemos Tite, Tita, Tuta, Toró, Cuca, Duca, Guga, Neca, Neco, Nena, Nenê, Nonô, Dida, Didi, Dicá, Vavá, Cacá, Kaká, Bizu, Bibi, Babá, Bobô, Dodô, Dudu, Pepe, Pipi, Zezé, Dedé, Lelé, Vevé e o mais radical, Biro-Biro. Telê, por incrível que pareça, era Telê de verdade - chamava-se Telê Santana. Sócrates, também - o seu nome completo, acredite ou não, era Sócrates Sampaio Brasileiro de Souza Vieira de Oliveira (um jornalista, de pilhéria, ainda lhe acrescentou um Orleans e Bragança). O insuperável Zico, filho de portugueses, é, naturalmente, o que resultou de Artur, Arturzinho, Arturzico. E algumas alcunhas não escondiam a conotação racista: Escurinho, Veludo, Cipó, Telefone, Tinteiro, Dendê, Rubens Feijão.

Mas o meu favorito de sempre é um inesquecível zagueiro do Vasco e da seleção brasileira dos anos 1990: Odvan. O que poderia ser apenas um desses estranhos nomes brasileiros - o seu nome completo é Odvan Gomes da Silva - explica-se porque a sua mãe gostava de uma música de Roberto Carlos, intitulada O Divã. Juro. O curioso é que a música, primária como quase todas de Roberto Carlos, não cita a palavra divã. Donde Odvan, que já se aposentou do futebol, pode orgulhar-se de ser o único Odvan que existe ou já existiu na face da Terra.

Jornalista e escritor brasileiro>

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