Miguel Xavier: "A saúde mental não pode andar ao sabor dos ciclos políticos"
Miguel Xavier, psiquiatra, assumiu o cargo de coordenador do Plano Nacional para a Saúde Mental em março. Sucede a Álvaro de Carvalho. Ao fim de sete meses nesta função, mantém-se "esperançado". E acredita ser possível continuar com uma reforma que foi interrompida em 2011. Até agora tem tido todo o apoio da Direção-Geral da Saúde e do Ministério da Saúde, mas lança alertas: para se fazer alguma coisa é preciso ter um apoio político sustentado, porque qualquer reforma na saúde mental demora anos. Portanto, a saúde mental, diz, "não pode estar ao sabor dos ciclos políticos", sob pena de corrermos o risco de termos um plano que é ótimo e que não chega a sair da gaveta. Portanto, é necessário que a política torne a saúde mental uma prioridade, é necessário que a saúde mental deixe de ser estigmatizada. Este é um dos seus piores inimigos.
Quais são os desafios que se colocam agora à saúde mental e ao coordenador do programa nacional para esta área?
O grande desafio que temos neste momento é recuperar os seis anos que ficaram por cumprir no período da troika. É ver se conseguimos fazer que as medidas que estão no Plano Nacional para a Saúde Mental 2007-2016, que era um ótimo plano, mas que foi interrompido ao fim de quatro anos, sejam implementadas. No ano passado fizemos um outro documento que é uma extensão das medidas no tempo até 2020. Não é um novo plano nacional. É bom que isto fique claro, porque o Plano Nacional de Saúde Mental de 2007 mantém-se perfeitamente atual. Ou seja, temos os conteúdos escritos só ainda não se conseguiu implementar as medidas. Faltam estratégias. São essas que são necessárias para se conseguir avançar, sob o risco de ficarmos com um ótimo plano por implementar.
Que estratégias são essas?
São várias. A primeira tem que ver com a constituição de uma equipa sólida que faça a coordenação deste processo. Se não houver uma equipa sólida no processo durante uns anos, este não se faz. Porque não é processo que se faça em um ou em dois anos, demora tempo. Mas neste aspeto tenho tido todo o apoio da Direção-Geral da Saúde (DGS) e do Ministério da Saúde (MS) e está quase constituída. Só me faltam as pessoas da área da psiquiatria infantil, porque de resto está tudo mais ao menos completo. Outra das medidas tem que ver com a articulação que temos de ter com os cuidados primários de saúde. Porquê? É simples. É que a maior parte das pessoas que têm problemas de natureza psicológica não vão, e nem têm de ir aos serviços de psiquiatria, têm é de ser atendidas nos centros de saúde. Simplesmente, estas unidades, neste momento, não têm capacidade para fazer muito mais do que já fazem - os médicos de família que lá trabalham já têm uma sobrecarga de trabalho enorme. Portanto, precisamos de duas coisas para mudar o panorama na articulação com os cuidados de saúde primários: de um novo modelo de atendimento, por exemplo através de psicólogos, o que significa que o sistema vai precisar de contratar ou de ir contratando estes profissionais. Não é contratar já para o ano, é preciso ir contratando, porque estas mudanças vão levar algum tempo a concretizar. Sabemos que Portugal não vive numa situação muito fácil do ponto de vista económico, e que vai levar algum tempo a termos as pessoas todas que são precisas nos locais certos. Mas vai ser preciso contratar outros profissionais, psicólogos, para fazerem atendimento nos centros de saúde. Por isso, não basta também contratá-los é preciso que haja um um novo modelo de funcionamento centrado no doente.
Como é que isso será possível?
A ênfase do novo modelo não pode estar centrada nos profissionais que prestam os cuidados, tem de estar nos doentes. Por exemplo, um doente quando vai a um centro de saúde com algum problema de saúde mental se calhar não precisa de ser logo medicado. Pode tentar-se tratá-lo de outra forma, mas para isso é necessário que lá estejam os técnicos adequados para o acompanhar. Se um doente está com uma leve depressão, se houver psicólogos, poderá ser tratado com psicoterapia, não sendo necessário avançar logo para a medicação, muitas situações podem ser resolvidas desta forma. Mas se não tivermos estes profissionais nos centros de saúde e se a unidade local de saúde mental tiver uma lista de espera de seis meses, é normal que o médico de família comece a tratar o doente com medicação. Esta reforma da saúde mental é uma reforma estrutural grande, que precisa de tempo e de dinheiro, precisa de investimento.
E as assimetrias regionais que hoje ainda são muito sentidas no tratamento aos doentes?
Esse é outro objetivo grande. Não faz sentido existirem assimetrias regionais num país tão pequeno. Portanto, há que começar a esbater um bocadinho esta realidade entre os centros urbanos e a periferia do país. Em algumas áreas há grandes deficiências. O Alentejo e o Algarve quase não têm ninguém, do ponto de vista de técnicos a trabalhar nos serviços públicos. Isto não pode ser, porque estamos a falar aproximadamente de 600 mil pessoas, e estas precisam de ter cuidados de proximidade. As pessoas não devem ter de ser obrigadas a vir a Lisboa para serem tratadas. Por exemplo, as crianças que têm descompensações não deveriam ter de vir a uma urgência de Lisboa para serem observadas. Muitas têm de andar 300 quilómetros para norte e mais 300 para sul. Isto precisa de ser mudado. Ou seja, as assimetrias têm de ser esbatidas com técnicos também, é preciso fazer uma reforma na área da saúde mental infantil.
Há mais áreas em que são necessárias mudanças?
Outra área que precisa de ser reformada é a dos cuidados forenses. Há serviços que precisam de uma grande renovação do ponto de vista das estruturas para se melhorar o atendimento aos doentes, apesar do trabalho excelente que as equipas fazem. Vamos tentar aproveitar para fazer uma reorganização do modelo de funcionamento da psiquiatria forense no nosso país. Não é mudar grandes coisas, mas é perceber onde estão as necessidades para fazer algumas propostas de melhoria, porque, de facto, a situação não é brilhante. Portugal teve neste ano uma recomendação do Comité de Prevenção da Tortura das Nações Unidas para fechar uma instalação no nosso país. É preciso ter isto em conta. E a tónica da mudança tem de ser a nível da logística, porque a nível técnico, de funcionamento das equipas, há um grau de compromisso brutal. As equipas da saúde mental trabalham muitíssimo bem. Agora, trabalham em condições que não são boas e que têm de mudar.
Falou na necessidade de estratégias, mas a definição destas e a sua aplicação dependem de quê?
Dependem de várias coisas, mas sobretudo de três. A primeira tem que ver com o facto de a saúde mental ganhar mais visibilidade mediática para se acabar com algum estigma que ainda existe. A saúde mental ou a doença mental têm um estigma há muitos anos, e não é só em Portugal. É no mundo inteiro, mas também é verdade que outras áreas da medicina também tinham estigma - por exemplo, o VIH/sida ou as neoplasias - e hoje verifica-se que tal já não acontece tanto, o estigma diminuiu. E isto porquê? Porque apareceram nos meios de comunicação de social figuras públicas que se assumiram como portadoras destas doenças, e acabaram por dar um rosto a uma vivência e isso foi importante para a luta contra a doença. É isso que é preciso na saúde mental, que esses exemplos comecem a surgir em Portugal. Em muitos outros países, sobretudo do norte da Europa, existem pessoas e até primeiros-ministros que se assumiram como tendo um problema qualquer nesta área, até uma depressão, o que ainda não acontece no nosso país. Aparecem muitas pessoas a dizer que têm cancro da mama e que vão lutar contra a doença, mas a saúde mental ainda tem de fazer esse percurso. Este é um dos lados que agravam o estigma, o outro tem que ver com a utilização semântica de alguns termos utilizados frequentemente e com os quais se deve ter maior cuidado. Muitas vezes aparecem no debate político frases como "isso é um discurso esquizofrénico" ou "parece que está com uma atitude bipolar". Ora, tudo isto precisa de ser pensado e trabalhado, porque estas coisas reforçam o estigma. E um dos maiores inimigos da saúde mental é o estigma. Não tenho dúvidas.
E os outros aspetos?
O segundo aspeto tem que ver com o facto de a saúde mental ter de começar a ser considerada pelo poder político como uma prioridade.
E não é?
Está a ser muitíssimo mais. Repito que da parte da DGS e do Ministério da Saúde tenho tido um apoio inexcedível. Vê-se que há uma preocupação muito genuína do poder central em relação à saúde mental e estou muito esperançado com o que possa vir a fazer. O terceiro aspeto é o mais difícil de todos: é o da sustentabilidade.
Porquê?
Porque a Reforma da Saúde Mental em Portugal avança de dez em dez anos, e recua de dez em dez. Isto não pode continuar assim. A reforma não pode estar ao sabor da política. Tem de haver alguma sustentabilidade das medidas para que estas possam ser levadas a cabo. E são medidas que levam anos a implementar. O tempo para a concretização destas medidas é muito maior do que o dos ciclos políticos. E das duas uma: ou existe algum acordo para que esta reforma seja sustentável ou se continuamos a mudar de políticas constantemente, interrompendo a aplicação de medidas aprovadas, vai ser muito difícil chegarmos a algum lado.
Há algum timing preciso para que todas as medidas sejam aplicadas de forma a travar consequências?
As medidas que aqui falei e que estão no Plano Nacional, divididas em dez áreas e em mais de 30 medidas, têm de ser lançadas nos próximos três anos, é o meu desejo. E finalizadas, porque há algumas que podem ir sendo finalizadas, em seis anos. Por exemplo, a rede de referenciação da infância e da adolescência está quase pronta e vai sair daqui a pouco tempo, mas há coisas que têm de se ir fazendo, e que vão demorar muito mais tempo. São de maior fôlego e podem levar anos, isso também aconteceu em outros países, onde levaram décadas. Agora, o essencial é que todas as medidas que estão no plano sejam lançadas até 2020, que nenhuma fique no papel. Tudo isto tem muito de política e de economia. Não é só uma questão técnica.
Isso quer dizer que para haver mudanças na saúde mental o poder político tem de chegar a consensos?
É importante e vai ter de haver um apoio político sustentado para se poder fazer esta reforma, senão corremos o risco de acontecer o que já aconteceu em outras alturas: mudam-se as políticas e mudam-se os planos de saúde. E as coisas vão ficando pelo caminho.
E as consequências dessa situação?
Uma das consequências é que os serviços não se envolvem nas mudanças. Dou um exemplo: de 2009 a 2011 conseguiu-se o envolvimento de serviços de hospitais gerais, conseguiu-se que algumas áreas que eram seguidas nos hospitais psiquiátricos passassem a ser seguidas nos hospitais gerais, mais perto das pessoas. Foi um processo que decorreu e que está na base da criação de serviços mais próximos. Esse é um processo que vamos ter de retomar. Há pessoas que vivem a 30, a 40 e algumas a 100 quilómetros dos hospitais gerais ou psiquiátricos e que poderiam estar a ser tratadas por um serviço de psiquiatria na zona onde vivem. Este é o processo mais longo de todos e foi completamente bloqueado a partir de 2011. Mas se queremos mudar alguma coisa, não há outra hipótese. Vamos ter de pegar nele outra vez.
Esse processo tem que ver com um dos direitos básicos dos cidadãos que é o do acesso aos cuidados...
Com o direito do acesso e com o direito da proximidade. Não há qualquer justificação para que uma pessoa que vive em Lisboa esteja a cinco minutos de uma unidade e que outra que vive a 80 ou a 100 quilómetros tenha de fazer esse percurso para se tratar. Não me parece bem.
Perante tudo isto, que futuro antevê para a saúde mental e para o programa que coordena?
Sou bastante pragmático. Os processos de reforma ou de mudanças nunca são lineares. Há sempre questões técnicas e politicas, sempre. Mas se conseguirmos lançar as medidas que estão no plano até 2020, grande parte delas poderá ser implementada no tempo que nos falta. Ou seja, quando estávamos a aplicar a primeira parte do plano, pensado para dez anos, mas que só funcionou nos primeiros quatro, ficaram ainda seis anos para chegar ao fim e concretizar tudo. Por isso, penso que seis anos são um prazo razoável para executar as medidas ou mudanças que estão no plano. Até 2020 têm de ser todas lançadas e se nos seis anos seguintes tivermos um apoio politico sustentado, achoque conseguiremos finalizar a maior parte das medidas importantes. Mas ainda há muito para fazer.