A esperança do lince ibérico

Publicado a
Atualizado a

Nesta semana conheceram-se os resultados da monitorização da política, que tive a honra de concretizar em 2014, de reintrodução de linces ibéricos no vale do Guadiana, depois de cinco anos de reprodução em cativeiro. De acordo com os dados publicados nesta semana pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), estão referenciados cerca de 200 linces distribuídos por um vasto território. Esta avaliação revela que, só em 2021, surgiram 70 novas crias de um total de 24 fêmeas reprodutoras.

Vale a pena recordar que o momento de libertação, em dezembro de 2014, numa propriedade cinegética em Mértola, dos dois primeiros linces - Jacarandá e Katmandu - tinha sido antecedido de mais de 20 anos de estudos e de projetos desenvolvidos pela comunidade de especialistas e técnicos, em especial do ICNF, mas também das ONG e da academia, num compromisso que atravessou vários governos de orientação política diversa. Fiz questão de, no momento da libertação daqueles dois linces, evitar qualquer aproveitamento político e prestar homenagem - que agora reitero - a todos os que, no Estado e na sociedade civil, tanto lutaram, durante longos anos, pela recuperação daquela espécie em perigo crítico.

Recordo-me bem, ainda que não valha a pena perder muito tempo com isso, das inúmeras críticas que se fizeram ouvir, em 2014 e 2015, à nossa decisão de reintrodução do lince ibérico no seu habitat natural. Uns consideravam que a competição - entre lince e caçadores - pela mesma presa (o coelho-bravo) condenaria aquela política ao fracasso. Outros asseguravam que todos os linces acabariam por morrer de atropelamento nas estradas nacionais circundantes ao habitat. Ora, estamos perante um claro sucesso de uma política pública e, sendo a biodiversidade uma das maiores prioridades que Portugal terá de assumir, vale a pena sublinhar aqueles que considero os fatores de sucesso desta política de recuperação do lince ibérico.

Em primeiro lugar, o conhecimento. O desenho das políticas públicas de conservação do lince e dos planos de ordenamento das respetivas áreas protegidas beneficiaram da sólida análise dos técnicos do ICNF e dos cientistas.

Em segundo lugar, o planeamento, de que são exemplo o Plano de Ação para a Conservação do Lince-Ibérico (PACLIP) aprovado em 2015, e as sucessivas rondas de financiamento comunitário (via fundos estruturais e programa Life) concretizados desde os anos 1990.

Em terceiro lugar, o amplo envolvimento das comunidades locais e, em especial, dos autarcas, das associações de caça e das ONG. Por exemplo, na preparação da reintrodução do lince em 2014, em Mértola, foram realizados censos de coelho-bravo e foi feito um levantamento de armadilhas ilegais e de locais de risco de atropelamento. Sendo que foram ainda celebrados acordos com vários proprietários de terrenos com elevada densidade de coelho-bravo, nos quais se construiu um cercado de adaptação para os primeiros animais vindos de cativeiro.

Em quarto lugar, uma exemplar cooperação com Espanha, que se materializou nas várias fases: nas candidaturas conjuntas a projetos europeus, na partilha de conhecimento entre os centros de reprodução de lince em cativeiro e nas estratégias de reintrodução no habitat natural.

Em quinto lugar, a monitorização em tempo real da reintrodução do lince, nomeadamente, através de radiosseguimento, de análises genéticas, de avaliação do estado sanitário dos animais e da abundância de coelho-bravo.

Em sexto lugar, a sensibilização ambiental, em especial, dos mais jovens. A defesa do lince foi, seguramente, uma das mais eficazes campanhas de mobilização das pessoas em torno da defesa da biodiversidade.

Finalmente, a estabilidade e a previsibilidade das opções. Estes resultados não teriam sido alcançados se não se tivesse verificado uma grande estabilidade das políticas públicas ao longo de vários governos.

Na prática, esta recuperação do lince ibérico deve mobilizar-nos para uma tarefa maior: a urgente inversão da tendência de declínio da biodiversidade a nível nacional e mundial.

Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt