10 AGO 2020
10 agosto 2020 às 01h23

"Estimular a autonomia é o mais importante. Os pais superprotetores amputam a autonomia dos filhos"

'Ensine o Seu Filho a Pensar - Como Formar Crianças e Adolescentes Independentes, Confiantes e Bem-Sucedidos' é o novo livro de Renato Paiva, pedagogo especialista em apoio terapêutico-pedagógico. Conversámos com o autor para perceber como se faz isso de ensinar um filho a pensar. E porque é tão importante.

Ensinar a pensar não é uma coisa que se aprende com a vida? Como pode ser ensinado?
Pensar é algo que se aprende com as experiências que temos. Nesse sentido, há vidas com mais experiências e vidas com menos. Nascemos com a capacidade de saber pensar mas temos de a aprender. Ensinamos pelo proporcionar de conhecimentos e de experiências variadas. Pelo modelo parental que cada criança tem, pelas situações e experiências por que passa, pelos jogos que joga...

Diz que começa desde que nascemos. Que papel tem o brincar?
Há vários tipos de pensar e em diferentes momentos da vida vamos aprimorando-os. O pensar à nascença é limitado e vai sendo desenvolvido pelas experiências que a criança tem. O brincar, sendo a sua linguagem universal, tem um papel importantíssimo. Se ao brincar às escondidas tenho de pensar onde é o melhor esconderijo, por exemplo, ou se jogar às cartas a melhor jogada que posso fazer com as cartas que tenho. É natural e flui com os ensinamentos que possamos proporcionar mas também pelas deduções e experiências que a criança vivencia.

Empatia, autonomia, criatividade, liderança, autoestima, curiosidade, otimismo. São estas competências conquistadas quando se ensina a pensar ou, pelo contrário, é estimulando-as que se ensina a pensar?
É uma relação de dois sentidos. O cérebro tem a capacidade de pensar e quanto mais pensa, mais se desenvolve. A todos os níveis. Não apenas na empatia, autonomia, criatividade, liderança, autoestima, curiosidade ou otimismo. Estas características desenvolvem-se ao contrário do que muitos ainda consideram. Ser otimista, ser criativo, ser empático, ser líder são coisas que se aprendem e desenvolvem. Depois de as aprender, vão-se melhorando ao longo do tempo.

Entre as competências importantes a estimular nas crianças e nos adolescentes, quais considera as mais importantes?
A autonomia. Ser autónomo significa conseguir pensar e agir, de uma forma global, por si. E, neste sentido, não porque seja melhor fazer as coisas sozinho, mas por ter de as pensar e maturar, muitas vezes sozinho. Desde gerir finanças pessoais a alcançar objetivos profissionais ou familiares. E, principalmente, assumir escolhas e decisões que tomamos.

E quais são as que atualmente estão mais "ameaçadas"?
A autonomia, pelo modelo parental excessivamente protetor; a criatividade, pelo modelo académico da valorização da repetição e memorização; e o positivismo por socialmente se dar maior ênfase ao negativo.

Qual é o maior obstáculo ao ensinar a pensar?
Acho que o maior obstáculo é a limitação que atribuímos ao conceito do pensamento. Muito frequentemente ficamos reduzidos ao pensamento lógico, o que torna muito redutor promover e desenvolver outros tipos de pensamento. Como a autocrítica, por exemplo. A capacidade de pensar sobre nós é algo difícil e pouco usual na nossa cultura.

Fala nos pais superprotetores ou helicóptero. Em que medida, pensando que estão a proteger os filhos, estão a prejudicá-los?
A questão não é a proteção, essa é boa, o excesso de proteção é que é impeditivo de as crianças terem vivências plenas. Os pais superprotetores amputam a autonomia dos filhos, muitas vezes fazendo com eles algo que já deveriam fazer sozinhos, ou pior, fazendo por eles. É cada vez mais frequente adolescentes que não escolhem roupa, que não vão para casa sozinhos ou que não sabem cozinhar nada para comer. Sobretudo nos grandes centros urbanos. O medo provoca esta superproteção que em muito limita o desenvolvimento dos filhos.

E o que os pais podem fazer para combater o medo e a ansiedade que os leva a esta superproteção?
A maioria dos medos e receios dos pais são empolados pela ênfase no negativismo cultural. Quem quer procurar soluções encontra soluções, quem quer procurar problemas encontrará problemas. Os filhos são encarados hoje como preciosidades. Como autênticas bolas de cristal que não se podem partir, nem sequer arranhar! Se olharmos para as crianças na rua, os pais têm medo de que brinquem porque podem cair. É raro encontrar crianças com joelhos ou cotovelos esfolados, e muito menos roupa com remendos. Os pais, para se sentirem melhores pais, procuram que os seus filhos sejam perfeitos e imaculados. Quando as crianças não são nem perfeitas nem se querem imaculadas.

Refere um estudo que mostrava que 66% das crianças entre os 3 e os 5 anos sabiam jogar computador e só 14 sabiam apertar os atacadores dos sapatos. O que é que isto significa em termos de futuros pensadores?
Que se valorizam hoje coisas diferentes desde logo. O mundo cada vez está mais orientado para - desculpem a expressão - totós. Estamos a assistir ao desenvolvimento de uma geração com uma imaturidade grande. Se olhar ao redor de um restaurante que tenha crianças à espera da sua refeição, muito provavelmente encontrá-las-á com um aparelho eletrónico. E alimentamos algo não só narcisista como perigoso, que é o querer já. As crianças naturalmente querem tudo, desde sempre assim foi, mas hoje elas querem tudo já. Agora! Saber esperar ou adiar uma gratificação é algo que se aprende. O imediatismo é algo sobre o qual os pais deveriam pensar.

E a escola? Qual é o papel da escola nisto de ensinar a pensar? As nossas escolas são muitas vezes "acusadas", por exemplo, de matarem a curiosidade, ao invés de a cultivarem. O que é preciso mudar?
Os modelos nunca serão perfeitos e existirão críticas. O modelo educacional em Portugal tem, na minha opinião, aspetos a melhorar, mas considero que tem feito uma evolução muito significativa. Os professores têm feito muito para isso, muitas vezes fazendo-o com muitos poucos recursos. A escola, não sendo perfeita, é um recurso fundamental para a promoção do saber pensar. Criar e proporcionar momentos de aprendizagem e reflexão é basilar. O caminho está a fazer-se e é longo. Deveremos conseguir definir políticas educativas a médio prazo e dar consistência às mudanças. Estar a mudar frequentemente, como temos assistido, dificulta o caminho que temos de percorrer porque nunca irá estar concluído. Sendo uma ciência social, está sempre em constante evolução.

Diz que a idade dos porquês, que para alguns pais é um autêntico martírio, deve ser eternizada. Como se faz isso? Como devem reagir os pais quando são bombardeados com perguntas?
Respondendo-lhes em detrimento de as evitar. Quanto mais saciarmos a curiosidade inata das crianças mais sedentas de conhecimento estarão. Devemos alimentar essa vontade de saber. Mais importante do que dar respostas é muitas vezes conseguir formular perguntas. Quando devolvemos com expressões do género "que chato", "porquê tantas perguntas", " vai perguntar ao pai", " eu já te disse que não sei" limitamos o acesso a algo de que a criança necessita para a sua construção do mundo. Não iremos ter respostas para todas as perguntas, naturalmente, mas o acolhimento e a orientação são basilares. Algo do género "porque te interessas por isso?", ou "não sei mas podemos ir procurar, que também estou curioso" ajudam a que a criança não se sinta denegrida nem posta em causa por algo que faz parte naturalmente do seu desenvolvimento.

A falta de tempo, no mundo atual, será provavelmente um dos maiores inimigos da educação. Há solução para isto?
Há, claro, mas a falta de tempo que normalmente caracterizamos é porque levamos uma vida muito acelerada, com muitos afazeres, e isso limita várias coisas, tanto pessoalmente como profissionalmente ou familiarmente. São prioridades que se definem e em diferentes alturas da vida fazemos opções igualmente diferentes. Quem é pai e mãe deve ter a parentalidade como uma prioridade. E encarando a parentalidade como uma cooperação alargada entre pai, mãe e rede de suporte como familiares ou amigos ajuda a não descurar a vida profissional, pessoal e mesmo amorosa. É uma questão de equilíbrio.

Outra das competências que diz ser importante cultivar é a autocrítica, mas é importante que seja equilibrada com autoestima, para ser justa e eficaz. Como fazer este equilíbrio? Os pais criticam de mais e elogiam de menos (ou vice-versa)?
Saber que se comete erros, que é natural e normal errar e faz parte da aprendizagem, é algo importante a vincar desde já. Não há aprendizagem sem erro. Diabolizamos muito o erro e queremos que as crianças não errem. Este estilo de parentalidade envolve aquilo de que há pouco falávamos, a hiperproteção. Como se errar fosse criar traumas futuros. Ao errar estamos a aprender e a refletir sobre o que levou ao erro, como posso melhorar, o que posso fazer diferente. Este pensamento crítico sobre o desempenho do próprio permite não apenas conhecermo-nos melhor mas também sabermos as nossas limitações, como também as potencialidades. Reconhecer não só aquilo em que erramos e não somos tão bons mas igualmente reconhecer em que é que somos naturalmente bons. Parece impregnado na nossa cultura dar maior evidência à crítica do que ao elogio. E sim, deveríamos elogiar mais.

As crianças e os adolescentes atuais têm acesso a uma quantidade e uma diversidade de informação como nunca existiu. Boa e má, verdadeira e falsa, que muitas vezes não conseguem discernir (quantas vezes nem nós, adultos). Este excesso de informação é prejudicial ou, apesar de tudo, ajuda a exercitar o pensamento?
Sim. Se o é para os adultos com um pensamento mais maturado é fácil constatar o quão difícil seja para uma criança e um adolescente. Até porque eles não têm um filtro tão eficiente. Acreditam mais e duvidam menos do que ouvem, leem e veem. E isso é perigoso. A desinformação causa ruído, assim como jogar um jogo com as peças de outro também não faz muito sentido. Deveremos adequar o acesso a conteúdos que sejam apropriados ao desenvolvimento. Tal como explicamos a morte, o nascimento, o sexo, de modo diferente a uma criança de 6 anos em comparação a outra de 15.

Dedica um capítulo aos videojogos. Pode ser um importante aliado para aprender a pensar? Quais os riscos?
Os jogos, sejam eles quais forem, promovem sempre o pensamento. Os videojogos não são exceção. Contudo, deveremos ser cautelosos com o uso indiscriminado e pouco controlado dos videojogos. É um capítulo a ler com atenção, porque na base está não só a criação de vícios como o isolamento físico ou os problemas oftalmológicos que podem provocar. Como tudo, tem potencialidades e limitações que deveremos considerar. Mas os pais deveriam ser mais conscientes disto, porque já vi muitos, mesmo muitos, a oferecerem um videojogo a crianças de 8/10 anos que são classificados para maiores de 18 anos por terem conteúdo violento ou sexual.

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