Acreditar "em qualquer coisa": a misteriosa categoria dos crentes sem religião
"Isso é o quê? Vegans?" O apelo no Twitter à assunção de crentes sem religião suscita perplexidade. "Isso existe?", pergunta alguém; outra pessoa pede mais definição: "Estás a falar de agnósticos, é?"
Não, não são agnósticos, ou seja, daqueles que têm em relação à religião e à crença uma posição de "neutralidade", nem ateus - dos que positivamente afirmam que não há lá isso de deuses, seres superiores, "entidades", "forças": só energia, matéria e acaso. Os crentes sem religião são parte do grupo dos que se afirmam como não religiosos - em crescimento na Europa e nos EUA e que em França e no Reino Unido são já a maioria - mas acreditam. Em quê? A resposta varia. Numa divindade não inscrita nas religiões existentes, num "poder superior", numa "força espiritual". Em "qualquer coisa".
Por exemplo assim: "Sou crente em que algo criou o universo e/ou também o primeiro clique em que vida nasceu do nada. Não acredito que esse ser nos esteja a observar ou a julgar para entradas no paraíso etc. Rejeito as religiões (não conheço todas, nem me esforço por conhecer) porque claramente elas nasceram com intuito de "formatar" e normalizar comportamentos sociais. Muitas baseiam-se no medo."
Quem fala é Lino Lisboa, 37 anos, militar, da capital mas há quatro anos a viver em Guimarães. Foi dos primeiros a responder ao desafio no Twitter: "Vi o seu tuíte e como me revejo nessa ideia de crente sem religião fiquei curioso." Apresenta-se: não cresceu num ambiente religioso, mas fez a primeira comunhão (cerimónia católica na qual a criança recebe pela primeira vez do padre um pedaço de pão, a hóstia, que representa o corpo de Cristo; para tal tem de antes confessar-se, ou seja, enumerar "pecados" que tenha cometido, e aprender sobre a religião e os seus deveres como católico). É que, explica, "aos sábados ficava sem amigos na rua para brincar e pedi à minha mãe para ir para a catequese".
A noção da existência desse algo em que Lino crê vem das "questões que a ciência ainda não conseguiu clarificar e, provavelmente, nunca conseguirá: como é que do nada nasce vida e como é que do nada nasce um universo com esta imensidão". Conformando-se embora com o facto de que "algumas questões nunca possam ver respondidas", crê que "esse ser outrora foi responsável por ter dado a ignição, e resta-nos sermos o melhor ser que conseguirmos - fazer o bem, ajudar os outros, ser altruístas, respeitar o que nos foi dado, respeitar o planeta etc".
Mas sente esse ser, essa entidade, no sentido de uma fé, ou é uma dedução racional? "Sim, sinto e gosto de acreditar que existe uma entidade, mesmo não tendo a certeza de que ela ainda exista. Gosto de visitar sítios que normalmente apelam a uma conexão com essa entidade. Esses sítios podem ser desde o topo de uma montanha, ou uma falésia para o mar, ou até igrejas."
Não é de panteísmo que Lino fala, mas Luís, nome não verdadeiro para um artista sexagenário que prefere não ser identificado, parece mais próximo disso. "Há uma espiritualidade e há um lugar onde se encontram as pessoas do bem que provavelmente entendem a religião e não a pratiquem nos moldes tradicionais. Descobri que compunha música quando acolitava aos meus 7 anitos. Não é uma questão de sim ou não, de preto ou branco. Existe um espaço, um pátio de gentios qualquer onde se pratica uma religião sem Deus definido."
Sem deus definido mas ainda assim com maiúscula. E isso implica uma prática, algum rito? "Não é prática nenhuma, apenas um posicionamento na vida. Diariamente usas a tua intuição desenvolvida numa área balizada por critérios construídos desde a infância." Algo que, acha, também os ateus podem praticar. E quem assim pensa crê em quê? "No Universo, na expansão constante, que nós somos uma representação desse mesmo Universo, na geologia e nos átomos e no meio disso tudo está a ideia de Deus e por isso aceitam a existência de Deus nesse contexto." E tal implica em alguma forma a ideia de um "poder superior"? "Superior é o magma que está em cima das nossas cabeças e que só usamos quando estamos disponíveis e gera a Arte, a criatividade e o engenho. Esse Deus superior a que te referes somos nós mesmos elevados a essa potência. Somos Deus de vez em quando. Mas também o somos na nossa vulnerabilidade. Em suma, somos nós o nosso próprio Deus com o Diabo incluído."
Próxima de Luís, Marcela, 20 anos, estudante universitária, fala do "mito da Gaia (a divindade-terra-mãe na mitologia grega) adormecida" para descrever o seu deus: "Raramente interage comigo. Está sempre por aí e acho que não tem bem uma consciência." Vendo "todos os deuses criados pelos humanos como o mesmo - Alá, os Hindus, os Devas; até os politeicos antigos, gregos, romanos, egípcios e nórdicos", Marcela crê que "todos os povos do mundo têm uma religião porque todos os povos sentiram o que eu sinto. A diferença são as caras que lhe deram".
E o que sente Marcela? Recua para explicar. "Foi ao reconhecer as diferenças entre o Deus cristão e o católico que me aproximei mais da minha espiritualidade. O católico é mau, guarda rancor, castiga quem supostamente ama. No catolicismo temos de confessar a padres e rezar a santos e provar a lealdade com dinheiro. Temos de seguir cegamente um livro escrito por sabe-se lá quem há milhares de anos, mas ignorar as partes que nos convém. Tem muitos floreados desnecessários, foi moldado pelo Homem para o servir melhor. Temos de temer Deus. É um Deus falso. Deus não quer ser temido. O cristianismo "puro" é algo com que me identifico um pouco mais. Um verdadeiro cristão não teme Deus, só o ama."
Com uma família cristã "a ponto de ter uma avó que chama aos calmantes "santinhos"", Marcela conta que "à volta dos 10 anos" decidiu que não acreditava em nada daquilo e afirmou-se ateia. "Fiz a primeira comunhão contrariada e tenho memórias de estar na catequese a pensar que aquilo era tudo ridículo, os meus pais deixaram-me ficar por aí." Mas foi perdendo o fervor ateu: aos 15 já se dizia agnóstica, mas o termo não correspondia bem ao que sentia: ""Agnóstico" parece ter medo de admitir que crê e medo de tentar definir a crença." Então, prossegue, "estive nesse não-pensar-muito até aos 18, quando comecei a "sentir" Deus. É uma energia cósmica. Comecei a acreditar no destino, na teoria das cordas, nas dez dimensões e no amor. Sempre acreditei no amor, mas agora sei que ele é Deus. Sinto Deus na música e na poesia. Sinto Deus nos olhos de quem amo. Deus não é homem nem mulher, não tem uma cara, mas sinto-o nos raios do Sol e no vento. Deus ama-me de volta. Talvez seja apenas a maneira que encontrei de lidar com todo o amor que sinto. Acredito muito na ciência (amo-a) e não quero descredibilizá-la, mas certas coincidências e a minha sorte estupidamente grande (que ultrapassa o meu privilégio) fazem-me olhar para lá dela".
A categoria "crentes sem religião" foi pela primeira vez inserida num inquérito nacional em 1999, num estudo da Universidade Católica dirigido pelo sociólogo Marinho Antunes, e apurou que 2,1% dos inquiridos se definiam assim.
A explicação para a sua inserção é dada ao DN pelo também sociólogo Alfredo Teixeira, que reproduziu o estudo para a Católica em 2011 e aferiu um aumento de 119% - para 4,6% - entre os dois inquéritos: "O meu colega introduziu-a por ter a noção de que há quem responda a estes questionários, por inércia, dizendo-se católico. Porque não se tornou não crente nem mudou de religião, e portanto há muita gente que responde "católico" porque é a categoria mais próxima."
No mesmo inquérito de 2011, a percentagem de pessoas que se assumiram como "sem religião" - incluindo, além dos "crentes sem religião", também indiferentes (3,2%), agnósticos (2,2%) e ateus (4,1%) - é de 14,1%, um aumento de 75% em relação a 1999, tornando-se assim, nas palavras algo irónicas de Jorge Botelho Moniz, um investigador doutorado em Ciência Política que se tem debruçado sobre o fenómeno religioso, "de longe o segundo maior grupo religioso no país". Um valor que contrasta com o do Censos: no mesmo ano, este apurou apenas 6,8% sem religião, enquanto 8,3% recusaram responder (a pergunta é facultativa).
A aproximação entre o valor dos sem religião no inquérito da Católica - que aliás, como se verá à frente, coincide com o de um inquérito internacional - e a soma dos sem religião e dos não respondentes no Censos (6,8 mais 8,3 dá 15,1) faz suspeitar que a formulação das perguntas será mesmo muito relevante; uma parte considerável dos sem religião poderá ter optado por não responder, quiçá por não haver uma categoria com que se identifique. Mas, apesar de a Comissão da Liberdade Religiosa, de que Alfredo Teixeira faz parte, ter já sugerido ao Instituto Nacional de Estatística que inclua "crente sem religião" entre as opções, o INE não terá dado sinais de aceitar a nova categoria (o DN questionou o instituto, sem obter qualquer esclarecimento).
A inclusão seria tanto mais importante porque, diz Alfredo Teixeira, o típico crente sem religião português se situa naquilo que denomina de "última periferia católica", onde estão aqueles que "tendo tido uma socialização católica não têm um exercício e sentimento de pertença, sentindo-se bastante mais confortáveis com uma categoria assim [a de crente sem religião] porque continuam a acreditar num determinado horizonte de transcendência mas não se inscrevem numa prática, num ritual. Não se excluem dos crentes mas não se incluem nos pertencentes."
"Believing without belonging" (acreditando mas não pertencendo) - é expressão inglesa cunhada para este grupo, que está a chamar cada vez mais a atenção pelo seu crescimento na Europa e nos EUA, acompanhando o aumento dos que se afirmam sem religião e que, de acordo com vários inquéritos, são já mais de um terço dos europeus e maioria em vários países, incluindo o Reino Unido e a França. O que não significa forçosamente, frisa a investigadora britânica Linda Woodhead, que os países estejam a tornar-se arreligiosos.
E Woodhead explica porquê numa palestra de 2016 sobre o tema, intitulada Why 'no religion" is the new religion (Porque é que a "não religião" é a nova religião): nos inquéritos mais recentes, só um quarto dos britânicos diz achar que não existe uma divindade. Exemplifica com um estudo de 2013, no qual entre os que se afirmaram como não religiosos 5,5% acreditavam na existência de um deus ou poder superior e 11% respondiam "provavelmente há", enquanto 18,5% não sabiam; os que consideravam que "provavelmente não há" eram 23% e 41,5% os que afirmavam "definitivamente não há".
Conclui Woodhead: "Nem todos os nones [expressão usada para os que dizem não ter religião] deixaram de acreditar. Há ateus mas também quem acredita - e esses são a maioria dos não religiosos." Uma maioria que "acredita numa força espiritual, numa energia, ou em "há alguma coisa" ou "há mais alguma coisa" [Woodhead deu essa opção no questionário]". Já os não religiosos que dizem acreditar na "imagem tradicional de um deus pessoal" são menos de 25%. De qualquer modo, adverte, nada disto é a preto e branco: "As religiões também têm uma alta proporção de agnósticos e ateus." De facto, no citado inquérito de 2013, 11% dos que tinham certificado "ter" uma religião (identificados como somes) disseram "provavelmente não existe um deus", e 6% "definitivamente não há", 15% não sabendo (o que tudo somado dá uns fantásticos 32%, ou seja, praticamente um terço dos que se dizem religiosos).
Há aliás cada vez mais investigadores a considerar que existe uma parte considerável de "não religiosos" entre as pessoas que dizem pertencer a uma religião maioritária e historicamente bem implantada, como a Igreja Luterana nos países escandinavos e a Católica no sul da Europa: dizem-se religiosos por pertença cultural e também por automatismo, por não quererem sequer pensar muito no assunto.
Confuso? Sem dúvida. Afinal, conclui Woodhead, a grande diferença entre nones e somes acaba por ser a prática: "O que os nones não fazem é integrar-se em práticas comunais, nem gostam de líderes religiosos." Assim, 25% diziam ter "uma prática espiritual em privado", 11% descreviam-se como "espirituais".
Em Portugal, de acordo com os citados inquéritos da Universidade Católica, 69,2% dos que se identificam como "crentes sem religião" são homens, e 51,4% foram batizados. Mas não existem até ao momento, pelo menos que se saiba, estudos nacionais mais aprofundados sobre esta população. O que há é um estudo do Pew Research Centre, Being Christian in Western Europe (Ser Cristão na Europa Ocidental), divulgado em 2018, e no qual se encontram algumas respostas interessantes.
15% é a percentagem de "não afiliados em religiões" apurada para Portugal, igual às da Irlanda e de Itália, as três mais baixas de entre todos os países inseridos no estudo, e bastante coincidente com os dados dos inquéritos nacionais. Entre esses, de acordo o Pew Research Center, 7% acreditam num deus "como o descrito na Bíblia" e 40% "noutro ente superior" ou numa "força espiritual no universo"; 44% não acreditam em nenhum poder superior, ou seja, são agnósticos, ateus ou indiferentes (e esta é a percentagem mais baixa de todos os países incluídos no inquérito; em Espanha são 53%, enquanto na Áustria e na Alemanha são 73%). Assim, de acordo com estes dados, 47% dos que em Portugal não seguem uma religião são crentes.
A necessidade de um maior conhecimento deste universo torna-se ainda mais óbvia quando os resultados do estudo Europe Young Adults & Religion (Os Jovens Europeus e a Religião), da Universidade londrina St Mary's em associação com o Institut Catholique de Paris, dão para Portugal uma percentagem de 42% de jovens (entre os 16 e os 29 anos) que se dizem "sem religião".
Quantos desses jovens se definirão como "crentes sem religião" não se sabe. Mas na Área Metropolitana de Lisboa - onde vive quase um terço da população do país e sobre a qual incide o último estudo de Alfredo Teixeira sobre identidades religiosas -, 12,4% dos que se definiram assim tinham entre 15 e 24 anos, sendo 16,5% entre 25 e 34, 17,9% entre 35 e 44, 17,9% entre 45 e 54, 12,4% dos 55 aos 64 e 22,9% com mais de 64. Por outro lado, no inquérito de 2011 da Católica 65,8% dos não religiosos e 52% dos crentes sem religião tinham 34 anos ou menos.
Parece pois evidente, como declara Alfredo Teixeira, que se trata de "um grupo altamente distribuído e muito heterogéneo e portanto de uma identidade em expansão". E se não há ainda um estudo mais aprofundado, que permita perceber como estas pessoas definem aquilo em que creem, Alfredo Teixeira avança algumas hipóteses. "Em O Peregrino e o Convertido, Danièle Hervieu-Léger trabalha a tipologia do "crente buscador", a passagem do crente "residencial" que vive numa inscrição religiosa, para uma trajetória de busca, de procura. São pessoas que estão em itinerário espiritual, à procura, abertas à experiência do que possa surgir."
Linda Woodhead concorda: "Os nones não são ateus hostis, são abertos." Considera que a afirmação de não pertença religiosa é sobretudo uma forma de diferenciação individual - que não só passa por rejeitar a religião como também o "secularismo". Este feroz individualismo convive com um total liberalismo no que respeita aos outros: segundo a investigadora, o grupo dos não religiosos, ou nones, considera que cada um deve decidir por si o que é. E ensaia uma explicação para o crescimento desta categoria: "A sociedade ficou menos religiosa, claro, mas as religiões ficaram mais religiosas. A ligação entre cultura e religião desfez-se. O fosso cada vez maior tem que ver com a diferença entre o que as religiões defendem e o que as pessoas, sobretudo os jovens, pensam. As igrejas exacerbaram o processo."
Como "grupo de controlo" para esta hipótese aponta os países escandinavos, onde o número de não religiosos não parece estar em tão franca expansão como no seu: "Na Escandinávia as igrejas têm avançado com a sociedade. A recusa de casar divorciados e de ordenar mulheres afastou muita gente das outras igrejas, que parecem estar a ficar cada vez mais sectárias."
Foi precisamente o absurdo das regras da Igreja Católica e a noção de não ser uma força só para o bem que afastaram a escritora Dulce Maria Cardoso, 55 anos. "Tive uma educação católica e cheguei a dar catequese, porque era a única maneira que tinha de ter acesso a um bairro de lata que existia ao pé de Cascais, o das Marianas. Mas fiquei muito desiludida porque havia crianças muito dedicadas e não conseguiam decorar o Pai Nosso e por isso não as deixavam fazer a primeira comunhão. O absurdo era tal que não conseguia lidar com aquilo. Tudo isso me foi afastando daquela estrutura. A Igreja Católica teve historicamente coisas boas mas a maioria são más no que me interessa, que é um mundo mais justo."
Num inquérito sobre a identidade religiosa, porém, escolheria a opção crente sem religião, porque não deixou de ter aquilo a que chama fé. "Essa fé teve dois momentos. Um numa situação de necessidade, quando tive um grande acidente e fiz um jogo com Deus. Disse "se tu existes vais curar-me e vou ficar bem e eu vou passar a acreditar em ti". Foi um jogo típico de adolescente - a ideia de que tinha alguém com quem negociar."
O outro momento é agora. Que fé é essa? Como se manifesta? "É como estar apaixonada, ou se sente ou não. E depois há a racionalização: tenho em mim uma ideia de bem que é maior do que tudo o que conheci, e não vem de mim - e essa ideia de bem é Deus." Já não é um "ente", como aquele com quem tentou negociar em adolescente. "Não é uma divindade no sentido clássico. Só mesmo a ideia de bem que me pauta a vida. Chamo Deus porque me é superior."
E há uma prática, como rezar? "Apesar de conceptualmente ser isto acabo por me relacionar com a religião católica e às vezes participo nos rituais porque preciso de conforto, mas não posso dizer que concordo. E rezar rezo de forma diferente - já rezei muito, mas agora não sinto essa necessidade. Lembro-me mais da fé quando me corre bem do que quando corre mal. É a ideia de gratidão e sintonia. Não é por achar "Deus deu-me isto". Acima de tudo é um sentimento e uma certeza que é inexplicável. Senti isso recentemente na operação da minha mãe ao coração. Fiquei calma e descansada porque sabia que ia correr bem. Não sei porque sabia, mas era uma clarividência. Se tivesse corrido mesmo mal à minha mãe naquele dia teria ficado muito espantada. E nem gosto muito de explorar isso. Recentemente terá sido a expressão mais forte disso a que chamo fé - é muito parecido com um milagre, porque não sofres."
As revelações podem surgir de sítios muito diferentes. João, 31 anos, trabalhador numa editora, conta a sua. "Pensava que era agnóstico, ou fui agnóstico durante muitos anos. Mas ultimamente, contactando com a minha companheira e a religião dela, que é o candomblé [uma religião afro-brasileira], acho que passei a ser crente."
Não se trata, porém, de uma "conversão" à religião da companheira. "A religião dela é de matriz afro-brasileira, e tem toda uma componente cultural, ritual e mítica com a qual não me identifico. Mas é difícil negar, estando na presença deles, e do que eles cultuam, que há algo com o qual eles estão a contactar. Ou a conviver com. De uma maneira que nunca senti na igreja."
Tenta explicar: "Entre outras coisas, eles incorporam os espíritos. Que depois falam através das pessoas. Ou dançam. Ou estão presentes de alguma maneira. Há mais coisas difíceis de explicar mas algo que, à distância, teria tendência para não levar a sério, e tratar como charlatanice, quando te acontece com gente que conheces (namorada, sogra, cunhada) é diferente. Podia dizer "ah não, elas estão a fazer uma performance, é tudo treta", ou "ah, elas deixam-se levar, é psicológico". Mas estaria a mentir. Não sei explicar o que aquilo é. Mas sei que existe. E presumo que isso seja alguma forma de fé."
Uma fé, porém, sentida por João em "incompreensão quase total, porque não consigo digerir as respostas que a doutrina delas lhes dá, nem ter as certezas que elas têm. Se acredito na existência da divindade? Sim. De uma forma direta, real e interventiva na vida das pessoas, não naquele sentido cósmico lato. Mas não tenho uma relação com essa divindade senão por via interposta".
Chegados aqui, cabe perguntar o que é a religião, o que distingue realmente o religioso com fé do que tem fé e não se diz religioso. Depende, claro, da noção mais ou menos rígida que se tenha de religião. Escreveu o frade católico Bento Domingues, numa crónica recente no Público, precisamente a propósito do inquérito às identidades religiosas na AML: "As religiões são construções simbólicas, rituais e organizativas do ser humano, sem garantias de infalibilidade, para configurar o sentido da vida e alimentar a esperança nos bons e nos momentos em que tudo parece perdido."
A seguir, cita frei José Augusto Mourão: "A era das definições unívocas de religião acabou. Prevalece uma conceção liberal que vai obrigar a que se aceite conviver segundo a ideia de que não há uma saturação do espaço da verdade. O espaço da verdade partilha-se." E, mais à frente: "O despertar da inteligência humana aconteceu quando um animal peludo bípede compreendeu um signo: o visto converteu-se em símbolo do não visto. (...) Se o ser humano é um animal simbólico - vendo o que não vê, trazendo para perto o que está longe - a sua fé desafia, mas não contradiz, a razão. Tem olhos e coração que a razão desconhece."
Se a religião for entendida como esse espaço de verdade partilhado (religião vem da palavra latina religio, de ligação) e sem garantias de infalibilidade, como um lugar de liberdade - e frei Bento Domingues chega a dizer que Jesus "não tentou fundar uma nova religião (...), deixou tudo aberto, em todos os âmbitos, à criatividade humana. Com uma condição: que tudo seja feito, com sabedoria, para servir e nunca para dominar" - talvez não faça sentido a distinção entre crentes com e sem religião: religiosos seriam todos os crentes, independentemente das suas vinculações a organizações ou cultos organizados.
Seria para isso necessário regressar ao início, à noção de que aquilo a que se deu o nome de religião começa sempre pela necessidade de responder a perguntas muito racionais e prementes, sempre as mesmas, as das angústias primordiais da existência, e que é só na forma como escolhemos nomear o que sentimos - a angústia e sobretudo o que a apazigua - que reside a diferença.
Pode ser deus, amor, bem, universo, espíritos, energia, "qualquer coisa". Pode ser o reconhecimento daquilo que nos une, como, diz Dulce Maria Cardoso, se sente em Fátima: "Já fui a Fátima e não acredito nada que a Nossa Senhora apareceu. Mas sei que tem uma energia especial, provavelmente por ir lá tanta gente. Interessa-me o que sinto, e sinto coisas diferentes. A maior parte das coisas de Fátima é muito desagradável. Mas depois há a ideia da segurança. E de que andamos todos à procura."