Hospital Amadora-Sintra convoca internistas de folga, "à revelia", para fazerem urgências extras
Em novembro do ano passado, os chefes de equipa de Medicina Interna do Hospital Fernando da Fonseca (vulgo Amadora-Sintra) apresentaram a demissão em bloco das funções que ocupavam por considerarem não terem condições de trabalho para prestar cuidados em segurança aos utentes. Na altura, a decisão agitou a Saúde.
O ministro Manuel Pizarro tinha chegado há pouco tempo à Saúde e o diretor Executivo do SNS, Fernando Araújo, ainda nem tinha tomado posse, mas o conselho de administração do hospital estava a reunir no dia seguinte como todos os médicos que tinham assinado a carta conjunta de demissão. Ao todo, 22. Os médicos levaram uma proposta do que pretendiam e até algumas soluções para melhorar o funcionamento do serviço de um hospital, cujo principal problema é o estar subdimensionado para a população que serve e com cada vez menos recursos humanos, sobretudo porque Medicina Interna é das áreas mais sobrecarregadas com trabalho nas urgências.
Mas tais reuniões, e tal como foi noticiado na altura, não levaram a grandes soluções. Como dizem ao DN fontes hospitalares que resolveram falar sob o anonimato, "se houve mudanças, quase que se pode dizer que foram de ordem estética, nada estrutural que possa ser mantido no tempo e que faça mudar o funcionamento do serviço e do hospital para bem dos utentes e dos profissionais".
Em julho, chefes de equipa, que continuam demissionários, assistentes hospitalares e todos os internos decidiram assinara em bloco uma declaração de escusa ao cumprimento de mais horas extraordinárias, uma vez que naquela altura a esmagadora maioria já ia com 400 a 600 horas extras na urgência.
A mudança do Conselho de Administração e da direção clínica fizeram com que adiassem o cumprimento desta decisão para o início de agosto, depois para o início de setembro e, por fim, para o dia 30 de setembro. No entretanto, os médicos esperavam diálogo, propostas de soluções e decisões das novas lideranças, mas continuou tudo na mesma, com a agravante, consideram as fontes hospitalares, de "haver sempre uma atitude por parte das administrações e das direções de tentar passar a imagem para a opinião pública de que está tudo bem na Medicina Interna da unidade. E não está".
As mesmas fontes explicam que as decisões tomadas em bloco, quer no ano passado e agora em julho, surgem precisamente porque "a nossa luta é de há muito tempo. E é, essencialmente, para que se consiga melhor valorização da especialidade dentro da própria instituição e melhores cuidados e condições de segurança para os nossos doentes. O Hospital Amadora-Sintra está numa fase crítica há vários anos, desde logo porque está subdimensionado para a população que serve, mas as sucessivas administrações não o têm querido admitir publicamente".
Aliás, a gota de água para estes profissionais aconteceu esta semana, quando os médicos dão início ao cumprimento da decisão de não fazerem mais horas extras, mas, no feriado de quinta-feira, dia 5, alguns recebem um e-mail das direções clínica e da urgência a recrutá-los, "à revelia, porque não houve sequer um contacto prévio", para fazerem urgência no fim de semana em que deveriam estar de descanso, e depois, "divulgam comunicados para a comunicação social a dizer que está tudo bem", como aconteceu na sexta-feira, dia 6, após o Hospital Santa Maria avisar que não receberia mais doentes de outras áreas. Em comunicado, o Amadora-Sintra diz que o desvio dos seus doentes estava resolvido.
Questionado pelo DN, o Hospital Amadora-Sintra reconhece que "na sequência da entrega de escusas de horas extraordinárias com efeito imediato a partir de 30 setembro, teve de haver, obrigatoriamente, alterações às escalas do Serviço de Urgência. Existiu, no entanto, sempre contacto prévio com os vários elementos das equipas escaladas, via telefone, e a escusa de trabalho extraordinário foi respeitada pela direção clínica".
O DN sabe ainda que na manhã de sábado, dia 7, um elemento da direção clínica telefonou a vários profissionais tentando que estes fossem trabalhar. Na manhã de domingo, o hospital pediu ao CODU o desvio de doentes urgentes para outras unidades até, pelo menos, às 22.30 do de domingo, dia 8, altura "em que teremos condições para voltar a efetuar o atendimento dos utentes das especialidades referidas (Medicina Interna, Cirurgia Geral e Ortopedia).
O CODU recusou. Na resposta à unidade lê-se: "Em virtude, dos outros hospitais da região de Lisboa estarem a receber apenas os doentes da própria área de influência, não é possível o CODU desviar os doentes do HFF, para outras unidades hospitalares".
O "recrutamento à força", como referem as fontes do DN, "atingiu tanto médicos com cargos em posições de chefias como internos mais novos", mas, mesmo assim, "houve períodos com buracos. tanto nas escalas da urgência externa como da interna", ficando apenas um assistente hospitalar de Medicina Interna para "a urgência toda e para dar apoio às urgências na enfermaria", o que é "algo que está muito longe de cumprir os mínimos definidos pela Ordem dos Médicos (OM) para as equipas tipo", referem-nos.
Por norma, "temos dois médicos assistentes na urgência interna a dar apoio a 600 camas. Neste fim de semana, há buracos nas escalas e um dos bips vai ter de ficar a cargo da urgência geral, sendo que esta está com equipas que integram só um assistente hospitalar e depois internos, alguns dos primeiros anos".
A OM recomenda que as equipas tipo devem ter um assistente para cada 100 admissões na urgência e "o Amadora-Sintra tem uma média de 400 por dia, pelo que deveria ter, pelo menos, quatro assistentes de Medicina Interna", argumentam, criticando: "Depois, o que vai para a comunicação social é que está tudo bem na Medicina Interna do Amadora-Sintra".
Segundo as mesmas fontes, mais grave ainda é que "à porta fechada, a direção clínica ameaça os médicos de bloquear férias, períodos de formação já agendados aos médicos, sem qualquer suporte legal nem institucional para o fazer, pois é preciso haver uma catástrofe para negar férias aos profissionais, e com a mudança dos horários em contrato, o que também só é possível com o consentimento dos profissionais".
A atitude da direção clínica e da direção da urgência foi considerada como "demolidora para a moral dos profissionais. Em vez do diálogo para as soluções escolheram o braço de ferro com profissionais que têm dado tudo ao hospital, que escolheram ficar no SNS e que têm lutado pela especialidade e pelo serviço", afirmam.
Ao DN, o hospital respondeu que "não há braço de ferro" e "repudia a insinuação". "Mas há algo central para a instituição e para o seu Conselho de Administração - assegurar a resposta à população com um Serviço de Urgência que tem uma das mais elevadas afluências de todo o país e que serve uma população de cerca de 600.000 pessoas".
Na Medicina Interna, dizem que o querem é precisamente "melhor resposta para os utentes", assumindo o "desespero". "A especialidade está numa fase derradeira no hospital. Temos perdido muitos especialistas que ali se têm formado e, neste ano, das oito a nove vagas lançadas para o internato, só uma foi preenchida. Isto nunca tinha acontecido. O serviço era muito procurado para formação e queremos continuar a lutar para ver se continua a existir e se é uma hipótese viável para os novos médicos".
As fontes do DN reforçam que "os profissionais estão exaustos", relembrando que quase todos já fazem 24 horas de urgência por semana, quando não têm de fazer mais, devido a outros imprevistos, e que "já são raros os momentos com a família", mas se não comparecem à urgência, o que lhes é oferecido, em contrapartida, "é um processo disciplinar".
Por isto mesmo, admitem, que o que o serviço sentiu, esta semana, "foi uma profunda tristeza". "Durante a pandemia, os médicos fizeram entre 80 a 100 horas por semana, fomos dos serviços do país que mais recebeu e tratou doentes com covid e com muito menos recursos que outros hospitais centrais. Mas foi um esforço que fizemos de livre vontade, porque a situação assim o exigia. Neste momento, discutimos entre todos como podemos melhorar as nossas condições de trabalho, e, depois, o que vem cá para fora é que está tudo bem?", acrescentando: "Os nossos utentes e a tutela merecem saber o que se está a passar na realidade para que possamos ter alguma capacidade de reposta, senão, não vale a pena continuar."
O DN confrontou o hospital também com esta questão de tentar encobrir o que se passa, tendo recebido como resposta novo "repudio por este tipo de insinuações, que nos surpreendem, quando a instituição e os seus profissionais estão a realizar um esforço adicional muito significativo e que reconhecemos, para dar resposta à população dos concelhos da Amadora e de Sintra e ainda às outras instituições da Região de Lisboa e Vale do Tejo, no âmbito da rede solidária do SNS. As situações atuais não estão a ser encobertas e há reporte regular com a DE-SNS e inclusive a todos os media que nos contactam".
Em jeito de desabafo, os profissionais contam ao DN que já passaram a fase da revolta e da zanga em relação às condições em que trabalham, o que sentem, reforçam, "é profunda tristeza e o que queremos é que olhem para a Medicina Interna do hospital", porque, sublinham, "os que cá ficaram querem melhorar o serviço, o hospital e o SNS. Os colegas que queriam sair do hospital e do SNS já saíram".
Este alerta não tem só a ver com a questão das horas extras ou com remunerações. Aliás, "ninguém está a dizer que não faz horas extras. A questão é que muitos já vão em 400, 600 e até mais e isto é incomportável". Por outro lado, "também não é uma questão de dinheiro, porque parte do rendimento dos médicos é sustentado com horas extras e nós estamos a dizer que queremos perder uma parte desse rendimento. O que está mesmo em causa é melhorar a especialidade e os cuidados aos nossos doentes neste hospital".
A Medicina Interna é muito mais do que o trabalho em urgência. "É a especialidade que trata os doentes mais complexos, com comorbilidades e se estamos constantemente a ser desviados das consultas, da nossa atividade em ambulatório, da formação aos médicos mais novos e até da investigação é o hospital e os doentes que perdem, porque depois é um ciclo vicioso: os doentes não têm consultas e acabam por ir mais à urgência".
Segundo explicam, o serviço de observação da urgência geral integra 36 camas, "o que já é muito para a dimensão do hospital, mas com macas esta capacidade estende-se até às 45, só que há constantemente 75 doentes. E há alturas no inverno que acolhe mais de 100 doentes em condições totalmente deploráveis para se fazer uma assistência médica em qualidade e em segurança".
Contam ainda que "a solução apresentada pelas direções clínica e da urgência, para tentar tirar doentes do serviço de observação da urgência, foi pôr macas no corredor do Serviço de Medicina Interna, o que é uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada. Ou seja, imagine o que haver doentes a terem de ser internados numa maca num corredor com dois metros de largura, a terem de fazer ali a sua higiene, tratamentos e observações sem qualquer privacidade e sem quaisquer condições. Assim o problema não acaba".
Ao DN, os profissionais dizem que se a administração entra "num braço de ferro, todos vamos perder, sobretudo os doentes", referindo mesmo que para o SNS ruir nem é preciso não fazer mais horas extras, "basta que os médicos cumpram apenas o horário contemplado no contrato de trabalho".
Os profissionais dizem estar solidários "com todos os médicos do país que estão a participar no movimento contra as horas extras", mas que o movimento deles é de há muito e que tem a ver também com o "salvar a especialidade no hospital e dar melhor assistência aos doentes". E só querem que, quem de direito, resolva os problemas.
Na resposta ao DN, o hospital explicou ainda que "o desvio CODU prende-se com vários motivos, incluindo ausência de vagas de internamento - um problema que é estrutural no Hospital Fernando da Fonseca (HFF), atendendo ao rácio cama/número de habitantes que serve. Foi o caso de sexta-feira, em que vigorou um pedido de desvio até às 15h", justificando ainda esta situação com o facto de ter, "neste momento, mais de 100 casos sociais a seu cargo, estando cerca de 36 situações sociais a ocupar cama de internamento e os restantes casos, sob a responsabilidade financeira do hospital em ocupação no exterior da Unidade. Acresce também a resposta da RNCCI, tendo o HFF cerca de 20 casos internados (já referenciados), a ocupar cama de internamento, ou seja, um total de 56 camas ocupadas com situações que não deviam estar no Hospital, atendendo a que não representam situações agudas para tratamento e acompanhamento".
Por outro lado, reconhece algumas queixas e diz: "Lamentamos o prolongar desta situação com a Especialidade de Medicina Interna. Este Conselho de Administração tomou posse a 5 julho de 2023, mais de 6 meses após a demissão dos mesmos. A alteração da Direção do Serviço Urgência a 22 setembro do presente ano é um passo importante para a melhoria das condições de trabalho dos profissionais. Nos últimos 2 meses têm ocorrido várias reuniões com alguns elementos da Urgência e Medicina Interna para identificação de pontos de melhoria. Há problemas que são conhecidos desde há vários anos e que têm possibilidade de resolução e é nisso que estamos a trabalhar em Equipa".