Bastidores de 'Casablanca'
Ao rever outro dia Casablanca, o grande clássico do cinema, no meio de um grupo de jovens - pessoas abaixo de 40 anos -, ouvi quando um deles se referiu ao jeito rude e desabrido de Humphrey Bogart, herói do filme. "Ele devia ser assim na realidade", disse alguém. "Interpretou esse papel de durão em todos os seus filmes. Aposto que passou a vida no submundo desde que nasceu."
Pedi licença para esclarecer. Foi exatamente o contrário. Bogart, nascido em 1899, vinha de uma família fina de Nova Iorque. Seu nome completo era Humphrey De Forest Bogart, e o De Forest, que herdou de sua mãe, remontava a alguns séculos de história - até hoje há vários De Forest americanos, todos grã-finos e todos seus primos. E o apelido Bogart era de seu pai, médico respeitado e também de uma família tradicional. Humphrey - nome "suave" que só algumas famílias usavam - foi educado para jogar ténis, dançar com debutantes e se casar com uma herdeira. Enfim, tudo, exceto trabalhar. Mas, ao se alistar na Primeira Guerra Mundial, conheceu o outro lado da vida e, pelos vistos, gostou. Largou a família, teve vários empregos, tornou-se ator de teatro e quando, finalmente, ganhou um grande papel - o de um assassino na peça A Floresta Petrificada, em 1935 -, já tinha 36 anos. Bogart levou esse personagem para o cinema e, até chegar a Casablanca, em 1942, consagrou-se interpretando gângsteres em dezenas de filmes. A história registra um diálogo seu de dez anos depois, com o produtor Sid Luft, marido de Judy Garland e que tentava se passar por chique e sofisticado. Bogart o enquadrou: "Você é um grosso, Sid. Não sabe o que é ser fino. Eu sei - porque vim de uma família assim. Mas preferi abrir mão."
Esta não é a única surpresa envolvendo o elenco de Casablanca. O ator alemão Conrad Veidt, que faz o major Strasser, o sinistro oficial que comanda as forças nazistas na cidade, também era exatamente o contrário do que parecia. Veidt, famoso por ter interpretado o zombies Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, na Alemanha, em 1920, deixou o seu país em 1933, quando Hitler tomou o poder. Pouco antes de deixar Berlim, até assinou uma declaração em que se dizia judeu - embora não fosse -, em solidariedade aos seus amigos judeus, que estavam sendo impedidos de trabalhar. Foi para Inglaterra, onde retomou a carreira e, em 1939, quando a Segunda Guerra estourou, doou todos os seus bens ao governo inglês, para ajudá-lo a combater Hitler. O seu último filme na Inglaterra, antes de partir para Hollywood, foi um dos meus favoritos: O Ladrão de Bagdad, de Ludwig Berger e Michael Powell, com Sabu. Neste, e em 90% dos filmes que rodou fora da Alemanha, Veidt interpretou o vilão - e, não raro, um vilão nazista! Não é irónico? Veidt morreu de enfarte pouco depois de concluir a filmagem de Casablanca. Nunca soube do sucesso do filme e de como milhões no mundo inteiro vibraram quando, na cena do aeroporto, já quase no final, Humphrey Bogart o mata com um tiro.
E você se lembra de Sam. É o pianista e cantor negro interpretado por Dooley Wilson, que toca a canção As Time Goes By para Ingrid Bergman e, pouco depois, Bogart exige que a toque de novo, agora para ele, embora esse diálogo - "Toque de novo, Sam" - não exista no filme. Dooley Wilson ficou tão famoso com Casablanca que, mal o filme foi lançado, começou a receber convites para se apresentar nos night clubs de luxo de Nova Iorque. Ao chegar para trabalhar, recebiam-no com a frase: "Ali fica o piano." E Dooley dizia: "Mas eu não sei tocar piano!" O gerente do estabelecimento pensava que ele estava brincando. Como não sabe? Como o pianista de Casablanca não sabe tocar piano? Quá, quá, quá! E Dooley tinha de se explicar: era cantor e ator, não pianista. Sua voz no filme era mesmo a dele, mas o piano, não --- era play-back. E ali se encerrava seu contrato com o tal night club.
A própria Ingrid Bergman, tão apaixonada por Humphrey Bogart em várias cenas do filme, nunca escondeu que os meses de filmagem de Casablanca tinham sido para ela um suplício. Ingrid, contratada da Metro-Goldwyn-Mayer, fora emprestada à Warner para filmar Casablanca e, em seguida, à Paramount, para fazer com Gary Cooper Por Quem os Sinos Dobram, baseado no romance de Ernest Hemingway. Para ela, Casablanca parecia um filme médio, não muito importante. Já Por Quem os Sinos Dobram seria uma superprodução, inclusive em cores, pelo ainda novo processo Technicolor, o que realçaria ainda mais a sua beleza. E, então, aconteceu: as filmagens de Casablanca começaram a se atrasar. O roteiro era escrito e reescrito à medida que as cenas eram filmadas e, com isso, ninguém sabia se, no fim do filme, Ilsa, a personagem que ela vivia, voltaria para os braços de Rick, vivido por Humphrey Bogart, ou se tomaria aquele avião para Lisboa com seu marido, interpretado por Paul Henreid. As duas versões foram filmadas para que se escolhesse uma. Decretado o fim do trabalho, Ingrid se despediu às pressas do pessoal de Casablanca e se mudou para a Paramount, a fim de começar, já com atraso, seu trabalho em Por Quem os Sinos Dobram.
Bem, como sabemos, Casablanca se tornou um dos filmes mais queridos e celebrados do cinema, enquanto Por Quem os Sinos Dobram mergulhou num oblívio tão profundo que nenhum daqueles moços ouvira falar dele. Pois, agora, você já sabe. Rick era um fino que se passava por grosso; o terrível major Strasser era, na verdade, um militante antinazista; o romântico Sam não sabia tocar piano; e Ilsa, bem interesseira, estava louca para se livrar de Humphrey Hogart e cair nos braços de Gary Cooper.
Jornalista e escritor brasileiro, autor de O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta da China).