PCP no banco dos réus por despedimento: "É-se funcionário enquanto o partido quiser"

Um antigo funcionário do PCP alega ter sido despedido por se opor à geringonça. O caso está a ser julgado no Tribunal do Trabalho e Jerónimo de Sousa é testemunha.

Se não é a primeira vez que o Tribunal do Trabalho de Lisboa julga um partido, este é, ainda assim, um caso raro no ambiente jurídico-laboral. E a falta de experiência está espelhada nas testemunhas deste processo. José Capucho, um dos quatro principais dirigentes do Partido Comunista Português (PCP), foi o primeiro a apresentar-se em tribunal, quarta-feira passada, na audiência de estreia do julgamento que opõe o partido ao ex-funcionário Miguel Casanova, o qual apresentou queixa por, alegadamente, ter sido despedido de forma ilegal. Em tribunal, Capucho deixou claro que considera as normas internas do partido superiores a qualquer lei laboral. "É-se funcionário enquanto o partido quiser", disse, tentando justificar assim a decisão do PCP em dispensar o funcionário.

Foi este dirigente quem mais de perto lidou com o desenvolvimento deste caso e, por isso, o seu nome surge várias vezes mencionado em todos os momentos descritos em tribunal.

Por várias vezes repetiu perante a juíza: "Isso são assuntos internos, senhora doutora". Contudo, viu-se obrigado a relatar tudo o que lhe foi questionado. Desde 2007 que Casanova, com quem garante só ter mantido uma "relação de militância", exercia funções políticas num gabinete do partido nas instalações da Organização Regional de Setúbal (ORS).

"Se não aceitas tarefas enquanto funcionário, é porque não queres ser funcionário"

Corre na família do antigo funcionário a veia comunista e o apelido é já bem familiar dentro do partido - Miguel é filho do antigo dirigente comunista José Casanova (morreu em 2014), que desempenhou várias tarefas como membro do comité central do PCP, da comissão política e como diretor do jornal Avante! Mas o legado familiar não concedeu imunidade a Miguel. Ao fim de mais de 11 anos de trabalho ao serviço do PCP - onde chegou após deixar um posto de trabalho efetivo que há anos desempenhava na Câmara Municipal de Setúbal - é despedido.

Em janeiro de 2018, Casanova terá recebido uma ordem da direção para se mudar para a Quinta da Atalaia, no Seixal, o mesmo local onde o PCP realiza todos os anos a Festa do Avante!. "Foi-lhe apenas referido que tal derivava de comportamentos não compatíveis com um dirigente, funcionário ou militante do partido", pode ler-se na petição inicial entregue ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Em causa estaria a passagem de funções políticas (estipuladas contratualmente) para técnicas e, por isso, não aceitou a mudança.

"A 4 de janeiro (de 2018), terei dado nota de que ele iria trabalhar no setor do património central do partido. Não quis ir, porque achou que estava a ser sancionado politicamente", conta José Capucho. Uma transição que garante ter sido decidida pelo executivo da direção regional de Setúbal, ao qual José Capucho pertenceu. Face à recusa de Miguel, ter-lhe-á dito: "Se não aceitas tarefas enquanto funcionário, é porque não queres ser funcionário", recorda em tribunal.

Casanova alega que foi despedido por se ter manifestado contra o apoio do PCP ao Governo de António Costa

Casanova manteve-se na ORS e quando, em março do mesmo ano, o seu gabinete é ocupado por outro funcionário, continua a apresentar-se na organização, agora sentado do lado de fora, na rua, à espera que lhe fossem delegadas tarefas. Dois meses depois, a 9 de maio de 2018, recebe uma carta a anunciar o seu despedimento, justificada pelo alegado abandono do local de trabalho. Facto que o PCP frisou quando contactado pelo DN: "A pessoa envolvida abandonou o trabalho, não foi despedida."

José Capucho garante que durante meses o convocou para várias reuniões com o partido, para que reconsiderasse a sua decisão de não aceitar mudar de instalações e tarefas. O mesmo garantiu ao tribunal que, para o ex-funcionário, nunca esteve em causa a alteração do local de trabalho, mas sim das tarefas e responsabilidades. "É um compromisso que se assume, quaisquer que sejam as tarefas", frisou.

Casanova alega que a cessação das suas funções começou a ser desenhada pelos seus superiores já em 2015, depois de se ter manifestado contra o apoio do PCP ao governo de António Costa - e a consequente geringonça. Na petição inicial, relata um recorrente ambiente de hostilidade e de "marginalização e perseguição" do PCP contra si, que se prolongou durante meses e culminou na sua dispensa.

Apesar da relação hostil, o antigo funcionário não pede indemnizações. Exige apenas a sua reintegração no partido, que o mesmo lhe continua a negar.

O primeiro advogado de Casanova "alegou que por pressões do PCP não podia assegurar a defesa"

Advogado ameaçado

Ao todo, há 14 testemunhas a serem ouvidas em tribunal no âmbito deste processo, algumas delas comuns à defesa e acusação. Entre militantes e funcionários, está também o secretário-geral do partido, Jerónimo de Sousa, bem como o deputado Francisco Lopes. Ambos foram chamados pelo advogado de Miguel Casanova.

É Pedro Namora quem o representa na sala de audiências. Aceitou o desafio apenas por amizade ao pai do requerente e porque mais nenhum outro aceitou defendê-lo. Na petição inicial entregue a tribunal, está descrito que o advogado que Casanova contratou inicialmente "reteve o processo durante dois meses e, no final, alegou que por pressões do PCP não podia assegurar a defesa".

Do lado do PCP, senta-se o advogado Luís Corceiro, membro da Comissão Nacional de Advogados do Partido.

Em entrevista ao DN, o histórico dirigente comunista da década de 1970 Carlos Brito diz ter recebido o caso com "surpresa". "No meu tempo houve algumas situações laborais deste género, mas tudo se resolveu a bem e internamente", mas "os tempos eram outros", lembra.

O que diz a lei portuguesa

Afinal, pode um partido ser julgado nos exatos termos em que seria qualquer outra entidade empregadora? A lei indica que sim. De acordo com o artigo 38.º da Lei dos Partidos Políticos, "os seus funcionários estão sujeitos às leis gerais do trabalho", o que significa que a legislação que irá prevalecer sobre qualquer contrato será sempre o Código do Trabalho.

À luz deste documento, um empregador só pode transferir o trabalhador para outro local (artigo 194.º) "em caso de mudança ou extinção, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço" ou quando esta transferência não implique "prejuízo sério para o trabalhador" - e caso estes custos se confirmem, deve ser a entidade empregadora a assegurá-los. Nenhuma destas alíneas se aplica ao caso. Na verdade, se o PCP justifica a sua decisão de transferir Miguel Casanova de Setúbal para o Seixal por "comportamentos não compatíveis" com outros funcionários, como está apresentado na petição inicial de Casanova, esta fundamentação é ilegal. Contudo, de acordo com uma fonte especialista em direito do trabalho, a questão pode não ser assim tão linear.

Um contrato de trabalho pode reger-se não só pelo código mas também por instrumentos de regulação coletiva de trabalho (através dos quais se reúne regras específicas para a empresa), bem como pelo regulamento interno de usos e costumes da entidade. Aos olhos da lei, a justificação do partido deve ser objetiva, mas o contrato laboral com o trabalhador pode mesmo prever situações de conflito ideológico ou entre funcionários.

O mesmo especialista duvida que este caso possa ser julgado como "abandono do local de trabalho", razão invocada pelo PCP para o despedimento. Esta justificação pressupõe que o funcionário não só atingiu o limite de faltas injustificadas como não revelou intenção de voltar ao ativo. E, de acordo com a defesa de Miguel Casanova, este sempre se apresentou a todas as reuniões entre janeiro e maio - a primeira a data em que foi designado para outro local e função, a segunda em que foi dispensado - e continuou a demonstrar interesse em continuar no ativo, quando questionado sobre o mesmo. E, neste caso, explica o especialista, haverá apenas matéria para que Casanova receba um processo disciplinar.

Uma última questão que põe em suspenso a decisão do tribunal é a legalidade com que foi comunicada a intenção de transferir o ex-funcionário. De acordo com o Código do Trabalho, a entidade empregadora deve dar a conhecer a sua decisão até 30 dias antes da oficialidade da transferência. Segundo a defesa de Miguel Casanova, tal não terá sido seguido.

Mas a sentença ainda demorará a chegar. Há mais de uma dezena de testemunhas para serem ouvidas. A segunda sessão de julgamento decorre já na próxima sexta-feira, dia 15 de março, no Tribunal do Trabalho de Lisboa.

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