O judaísmo e as crises

O DN perguntou às três religiões abraâmicas em Portugal: "Como irá viver-se a fé no futuro?". O ex-presidente da direção da Comunidade Israelita de Lisboa responde.
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Foi feita pelo DN uma pergunta às três religiões abraâmicas existentes em Portugal, judaica, cristã e islâmica: "Como irá viver-se a fé no futuro, a partir desta crise pandémica?"

Nós, Comunidade Israelita de Lisboa, aqui representando o judaísmo, pensamos que, na área específica da fé, nada se modificará além de uma eventual exacerbação do credo.

Perante uma doença que pode matar, e sobretudo porque todos sabemos que o tratamento tem sido apenas sintomático, com tentativas de efetividade, mais ou menos empíricas, os crentes, como é humano, recorrem à sua capacidade espiritual de mitigação da sua natural aflição.
Atrevemo-nos mesmo a dizer que no cristianismo e no islão passar-se-á fenómeno idêntico.

Estando felizmente no século XXI, as reações populares já não serão a busca do habitual bode expiatório, apontando o dedo, todavia, a eventuais causas de caráter político.

Evidentemente que, numa pandemia como a que vivemos, os serviços do Estado tiveram a necessidade e a obrigação de tomar medidas de saúde pública que, no que toca a liturgias, hábitos e costumes das religiões, causaram perturbações.

A imperiosidade e a necessidade das alterações introduzidas nas liturgias foram de imediato aceites por responsáveis e fiéis, mesmo nestes períodos absolutamente críticos das religiões em causa, Pessah (Páscoa judaica), Páscoa cristã e Ramadão islâmico.

Para a Comunidade Judaica Mundial, houve mesmo responsas rabínicas no sentido de alteração dos preceitos fundamentais da lei judaica durante o Pessah, pelo que ao abrigo de um preceito milenário, por motivos de saúde, poderão ser suspensas 610 das 613 obrigações absolutas dessa lei. Assim sendo, puderam as famílias separadas pela necessidade obrigatória de confinamento nas residências celebrar os sedarims (ceias pascoais), através das tecnologias digitais de comunicação, com a vantagem adicional de poderem estar "presentes" até os familiares do estrangeiro e os amigos também em isolamento sanitário.

No entanto, todos os atos de liturgia presencial foram suspensos, ficando as sinagogas encerradas. Algumas liturgias sinagogais necessitam, para determinados atos, como a leitura da Torá, de um quórum de pelo menos dez homens, mas, evidentemente não se realizaram.

Todos entendemos estas alterações como transitórias e causadas por uma conjuntura social de exceção, mas que, no entanto, poderão vir a ser alteradas no sentido de uma melhor adaptação a modos de vida mais atuais, sobretudo em razão dos avanços tecnológicos.

Estas modificações, embora momentâneas, não são novidade, pois outras, agora na rotina, já se alteraram por força da mesma lei, o preceito obrigatório Pikuah Nefesh - Prioridade à Vida - tendo como exemplo os transplantes de órgãos que se destinem a tratar e salvar a vida de um doente, sobrepondo-se à lei de inviolabilidade dos corpos, assim como à aceitação de um outro conceito de morte, a morte cerebral.

Numa religião como a judaica, com uma história estimada em quatro a cinco milénios, com uma forte influência filosófica sobretudo a partir de Maimónides, século XII, com um percurso histórico atribulado, desde a Babilónia ao Egito, das Cruzadas à Inquisição, passando por acusações de pestes e cataclismos, até ao Holocausto, nada, nem qualquer tipo de crises, é novidade.

As grandes mudanças do mundo já não são, certamente, para os judeus o centro de uma problemática, mas apenas o estudo de uma nova adaptação. A diversidade de correntes religiosas e conceptuais do judaísmo, desde as ultraortodoxas até às seculares,confere uma extensa gama ideológica de pensamento adaptativo às mais radicais transformações a que temos assistido na humanidade, mas sempre com uma visão de futuro sem nunca negligenciar o passado.

A consequência desta heterogeneidade espiritual, de ritualidades e até teológica não é desagregante, pelo contrário, congrega em torno de um tronco histórico-filosófico e tradicionalista. Esta diversidade tem cada vez mais uma tendência de grande abertura, pese ainda alguma contestação interna dentro de algumas instituições dominantes, mas abre cada vez mais novos desafios ao judaísmo.

No futuro deste mundo atribulado não se esperam facilidades, mas parafraseando Amos Os, acerca da política do Médio Oriente, teremos sempre de valorizar nas nossas decisões, o que, na realidade, é perene e importante, em prejuízo do acessório e passageiro.

Médico e ex-presidente da direção e da Mesa da Assembleia da Comunidade Israelita de Lisboa

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