Dupla derrota de May: emenda trabalhista previne Brexit sem acordo

Uma emenda ao Orçamento britânico restringe os poderes do governo de Theresa May em caso de saída não negociada. Mas tão ou mais importante, demonstra que há uma maioria de deputados que estão contra o cenário mais radical.
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O que é, aos olhos de um britânico, a inauguração de uma exposição com o famoso O Grito, de Edvard Munch? A metáfora perfeita para o Brexit. Mas para parte dos britânicos o desespero transmitido pela obra do artista norueguês deu lugar a alguma esperança após a votação de terça-feira à noite na Câmara dos Comuns. Nada menos que 20 conservadores juntaram-se a deputados de outras bancadas e aprovaram, por 306 votos contra 296, a emenda n.º 7 ao Orçamento do Estado. "Não vamos permitir que aconteça uma saída sem acordo no fim de março", proclamou o tory Oliver Letwin.

Tratou-se de uma derrota para os conservadores em dois níveis: ao governo de Theresa May, que mais do que os efeitos práticos da medida vê comprovado que não tem uma maioria parlamentar consigo para aprovar o acordo de retirada da UE; e aos brexiteers como Boris Johnson e Jacob Rees-Mogg, que advogam uma saída sem acordo.

A iniciativa partiu da trabalhista Yvette Cooper, na segunda-feira, que tendo recebido o apoio de deputados de vários partidos conseguiu levar a emenda n.º 7 a debate e votação na terça-feira.

"Na prática, a emenda dá uma salvaguarda ao Parlamento. O governo não pode avançar com medidas sem voltar ao Parlamento. É a nossa oportunidade. Há quem diga que é irresponsável, que é indesejável e não patriótica, que é desnecessária, e que não é estratégica. Todos estão errados", disse Yvette Cooper durante o debate. "Se houver um impasse, isto permite um caminho a seguir. É uma emenda extremamente responsável. Irresponsável é deixar o governo à deriva. Seria uma negligência grosseira da responsabilidade dos membros desta casa infligir uma situação de não acordo aos nossos eleitores", disse. "É a altura para os membros de todos os partidos deixarem claro ao governo que um Brexit sem acordo é absolutamente inaceitável. Esta emenda não resolve os problemas do Brexit, mas dá-nos uma oportunidade de lidar de forma ponderada e ordenada", concluiu.

A emenda prevê reduzir os poderes fiscais do governo no caso de não haver acordo, a menos que o Parlamento vote especificamente uma autorização. Para evitar as restrições à ação do governo, o acordo proposto por Theresa May teria de ser aprovado. Outra hipótese, que o governo continua a não admitir por ora, é o pedido de extensão do artigo 50.º do Tratado de Lisboa, na prática uma forma de suspender a contagem para o Brexit. Ou ainda um voto específico dos deputados a aprovar um Brexit sem acordo (uma hipótese condenada à partida).

É neste formato de três opções que os deputados podem decidir tentar aplicar emendas a outras leis que vão ser apresentadas na Câmara dos Comuns. Sete projetos de lei nas áreas de comércio, agricultura, saúde, serviços financeiros, pesca e imigração vão ser votados com o objetivo de proporcionar a denominada saída suave, em oposição ao Brexit duro, até março, bem como legislação específica para o acordo de retirada.

Conservadores desafiam liderança

Horas antes, Yvette Cooper esclarecera ao The Guardian que a "emenda não afeta as operações normais das finanças e do governo". Cerca de uma dúzia de conservadores assinaram a proposta de emenda e 20 votaram a favor, apesar de terem recebido instruções para votar contra por parte do chefe da bancada.

Dois deputados conservadores deram a cara pela emenda. Oliver Letwin, que trabalhou na equipa de Margaret Thatcher e no governo de David Cameron, fez um discurso emotivo. Depois de ter lamentado votar contra o sentido de voto da sua bancada pela segunda vez em mais de 20 anos, explicou que o iria fazer "não pela emenda em si, mas pelo precedente de que uma maioria não vá permitir uma saída sem acordo". Letwin deu o exemplo, enquanto secretário de Estado das Políticas Governamentais, função que teve durante cinco anos, da importância de os funcionários públicos estarem preparados. "A saída sem acordo necessita de preparação."

Já Nick Boles deu uma estocada na ala direita dos conservadores. "As mesmas pessoas que dizem que o Parlamento é soberano e que deve ter o controlo dos assuntos locais e nacionais são as que criticam a minha posição."

O líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, exultou com o resultado da votação. "Esta votação é um passo importante para evitar um Brexit sem acordo. Demonstra que não há maioria no Parlamento, no governo nem no país para a saída da UE sem acordo", reagiu no Twitter.

Logo de seguida voltou à carga: "É por isso que estamos a aproveitar todas as oportunidades possíveis no Parlamento para evitar a inexistência de acordo. Agora Theresa May deve descartar de uma vez por todas essa hipótese."

Quem defende a emenda reconhece que esta, por si só, não pode impedir a ocorrência de um Brexit sem acordo. Mas é uma derrota política em toda a linha para o governo.

À Reuters, fontes próximas das negociações em Bruxelas afirmam que o cenário de uma extensão ao prazo inicial de 29 de março é agora cada vez mais provável. "Nós podemos, é claro, adiar o Brexit. Mas a questão mantém-se - para quê? Para se realizarem eleições gerais? Outro referendo?", questionou uma das fontes na capital belga.

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