Garrincha, talvez o maior jogador do futebol brasileiro depois de Pelé, não gostava de futebol. É verdade. Ninguém jamais o viu sentado num estádio, assistindo a uma partida de um clube ou da seleção brasileira. No trágico dia 16 de julho de 1950, em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai no Maracanã por 2x1, o jovem Garrincha, com 16 anos, devia ser o único brasileiro que não estava ao pé do rádio escutando o jogo. Ao contrário, passou aquela tarde à beira de um rio no meio da floresta, pescando. Ao voltar para casa, encontrou todo mundo em sua cidadezinha chorando. Ao saber que tinha sido pela derrota, comentou: "Que bobagem, chorar por causa de futebol!" Oito anos depois, em 1958, ele próprio faria o país inteiro chorar, mas de alegria - ao ser decisivo para a conquista pelo Brasil da Copa do Mundo da Suécia, a primeira de sua história..Bem, é claro que Garrincha gostava de futebol. Mas só de jogar. E não se preocupava particularmente em vencer a partida, ganhar títulos ou mesmo receber altos prêmios ou salários. Se pudesse se divertir no relvado com seus dribles e fintas, estava ótimo. Sim, ele era assim - o profissional mais amador que já existiu..Dorival Caymmi, o compositor e letrista baiano, escreveu muitos sambas e canções sobre o mar e a pescaria - "É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar"; "Minha jangada vai sair pro mar/ Vou trabalhar, meu bem querer/ Se Deus quiser, quando eu voltar do mar/ Um peixe bom eu vou trazer"; "Cerca o peixe, bate o remo/ Puxa a corda, colhe a rede/ Ó canoeiro, puxa a rede do mar". Etc., etc. E por isso se tornou, para todos nós, o grande cantor do mar. Pois imagine nossa surpresa, há alguns anos, ao ler em sua biografia, escrita por sua neta, minha amiga e ex-aluna Stellinha Caymmi, que vovô Dorival... não sabia nadar e nunca pescara na vida!.Caymmi foi autor também de alguns dos sambas-canção mais urbanos e sofisticados dos anos 1950. Neles, ele descrevia as noites de Copacabana, com seus homens ricos e elegantes e suas mulheres modernas e tentadoras. Ao ouvi-los, quase se podia imaginar Caymmi ao volante de um carro conversível, fazendo a ronda das casas noturnas e sendo disputado por aquelas mulheres. Bem, disputado ele talvez fosse. Mas não ao volante de um carro - porque não sabia conduzir..Já Tom Jobim, nossa maior expressão musical, não gostava de falar de música. Só queria saber de dicionários. Estive muitas vezes em sua casa, no Jardim Botânico, ao pé de seu piano. Sobre a tampa, nunca vi um livro de música - mas vi muitos dicionários, e de tudo que se imaginasse. Dicionários de pássaros, dicionários do folclore, dicionários de português. Era um apaixonado pela língua. Quando passava muito tempo em Nova Iorque falando exclusivamente inglês, fazia exercícios vocais sozinho e em voz alta, dizendo coisas como: "Pão, feijão, alemão, João, me dá um cafezinho que eu estou fraquinho sentado nesse banquinho" - uma saraivada de ãos e inhos para pôr o maxilar de volta no lugar..E, mesmo no Brasil, todo mundo pensa que o escritor Guimarães Rosa, autor do épico Grande Sertão: Veredas, era íntimo do sertão. Afinal, de que outra maneira ele conseguiria descrever aquele imenso universo rústico, na fronteira entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás, com uma língua toda própria e uma absurda riqueza de detalhes? Mas, na verdade, Rosa mal conhecia a região - só esteve nela por duas semanas, em 1952. Passou muito mais tempo em Hamburgo, na Alemanha, onde foi cônsul do Brasil durante a Segunda Guerra, e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no Rio, onde era o responsável pelos limites e fronteiras do país. Aquele sertão, ele o tirou de sua imaginação..Nara Leão surgiu na cena musical em 1964 cantando um samba de protesto, de Zé Kéti, que dizia: "Podem me prender, podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro, eu não saio, não" - sendo o morro, claro, sinônimo de favela. Só que, até então, Nara nunca subira a um morro na vida - morava na Avenida Atlântica, em Copacabana, de frente para o mar. E Paulo Coelho, que, hoje, em qualquer país em que esteja, só pode sair à rua escoltado por um batalhão, morava há 20 anos no andar térreo de um prédio numa das ruas mais populares também de Copacabana. Saía para comprar o jornal na esquina, tomava café em pé no balcão e falava com todo mundo que encontrava pelo caminho. Posso garantir, porque fiz esse percurso com ele - e ele já era o autor do Diário de Um Mago..O que se depreende de tudo isso? Que o artista será maior quando inventar o seu próprio universo - e não apenas viver nele..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha (Tinta-da-China).