É um homem em crise que chega a Veneza no Outono de 1948. À beira dos cinquenta anos, Ernest Hemingway não publicava nada há quase uma década, lutando corpo a corpo com um manuscrito estilhaçado de mais de 900 páginas, livro gigantesco, interminável. Não era feliz no casamento com Mary Welsh, sua quarta mulher, que conhecera em Londres em 1944, quando ambos cobriam a II Guerra..Ao sair de Cuba rumo à Europa, transportando consigo mais de trinta malas, o casal Hemingway não tinha sequer a intenção de visitar Veneza. Ele estivera por perto há muito tempo, mas não chegara a conhecer a cidade: em Julho de 1918, poucos dias após entrar em combate, o jovem aspirante a herói, com apenas 18 anos, foi ferido com gravidade nas margens do Piave e imediatamente evacuado para Milão. Mary também nunca fora a Veneza e, ao fim de quatro anos de casamento com "Papa", sentia falta da vida social de Londres e Paris. O corrupio de gente e as almoçaradas infindáveis na Finca Vigía, as farras constantes e as bebedeiras de rum nos bares de Havana, as pescarias no iate Pilar e as tardes de tiro aos pombos no Club de Cazadores, nada conseguia apagar a memória da Europa sofisticada e das amizades intelectuais que por lá deixara. Além disso, com 37 anos, Mary ansiava ter um filho. Ernest, a entrar na idade madura, já pai de três rapazes, não era entusiasta da ideia..Na escrita, Hemingway ambicionava regressar às glórias pretéritas de Fiesta, de O Adeus às Armas, de Por Quem os Sinos Dobram. Os críticos consideravam-no um autor do passado, sem rasgo nem chama, no ocaso da carreira. Tinha em mãos um projecto literário monumental, uma trilogia de guerra dividida em três partes: a guerra no mar, na terra e no ar. Com isso esperava esmagar a concorrência de consagrados, como William Faulkner, e de jovens autores de sucesso, como Norman Mailer ou Irwin Shaw (este último carregava a agravante de ter sido amante de Mary Welsh). Chamava-lhes "Tolstoys de Brooklyn", invejando o tremendo êxito dos seus livros..É com esse estado de espírito turvo e sombrio que os Hemingway atravessam o Atlântico, tencionando passar o Inverno na Provença, com um salto a Paris. No dia 18 de Setembro de 1948 chegam à Madeira: Ernest desembarca para esticar as pernas em terra firme e para acompanhar Mary num passeio pela lota do Funchal. Dois dias depois, em Lisboa, lê os jornais pela primeira vez, ao fim de duas semanas em alto mar, enquanto bebe aperitivos num bar do porto da cidade. O navio parte para Cannes, mas uma avaria faz o comandante optar por Génova, onde uma multidão tumultuosa de repórteres e fotógrafos aguardava no cais o escritor famoso. Perguntam-lhe se era comunista, questão candente na Itália de 1948, tendo ele respondido que não, que apenas combatera pela liberdade e que era um republicano "à maneira de Garibaldi". Conhecia bem Itália, estivera lá diversas vezes; em Junho de 1922, entrevistara Mussolini, descrevendo-o como "o maior bluff da Europa", o que lhe valera ser banido do país, sendo os seus livros - e os de todos os autores americanos - proibidos pelo regime fascista..Transportados no seu enorme Buick, os Hemingway atravessam a região dos lagos, visitam o mausoléu de D'Annunzio, vão esquiar em Cortina, decidem conhecer Veneza. Aí, hospedam-se no Gritti, em grande estilo. Mary perde-se no turismo e nas compras, Ernest instala-se no Harry"s Bar, apaixona-se pelos canais soturnos, faz amizades boémias entre a decadente nobreza local. Numa caçada aos patos na laguna de Veneza, conhece Adriana Ivancich, uma jovem aristocrata de rara e sedutora beleza, que acabara de terminar o liceu. Com 18 anos, Adriana era da idade dos seus filhos. O resto, expectável: um amor crepuscular de meia-idade, encontros furtivos e passeios de gôndola, as cartas trocadas ao longo dos anos, o escândalo nos jornais e a censura materna, ciúmes contidos de Mary Welsh. Adriana e a mãe chegam a visitar os Hemingway em Cuba, Ernest torna-se benfeitor da família muito para lá do razoável, faz-se amigo do irmão mais velho, a jovem desenha-lhe as capas dos seus romances, para desespero dos editores. Num livro recente, Autumn in Venice, Andrea di Robilant insiste que aquela paixão tardia foi platónica, isenta de contactos carnais, ponto que à distância se afigura totalmente irrelevante. Arrebatado como um adolescente, Hemingway definia a sua relação com Adriana através de uma expressão em castelhano, dizendo que era una cosa sagrada, e é isso o essencial. Adriana Ivancich foi a musa inspiradora que permitiu a Ernest Hemingway vencer o seu bloqueio criativo, escrevendo Na Outra Margem, Entre as Árvores, livro vincadamente autobiográfico - que muitos consideram falhado, quase patético - onde se cruzam em Veneza uma jovem aristocrata, Renata, e um coronel moribundo. As coincidências eram tão óbvias que, para proteger a reputação da amada, Hemingway tudo fez para impedir a edição italiana do livro. Seguiram-se o estrondoso êxito O Velho e o Mar, as memórias de Paris é uma Festa e os romances póstumos Ilhas na Corrente e O Jardim do Éden..O tempo e a vida acabariam por afastá-los. A separação, porém, não trouxe a paz a nenhum deles. O primeiro casamento de Adriana é um desastre: um grego ciumento e possessivo que a obriga a romper relações com "Papa" e a destruir todas as suas cartas. Enquanto aguardava pela anulação de um primeiro casamento, o futuro marido encerra-a longos meses num convento do Sul de Itália; mais tarde, já casados, abandona-a numa fazenda que tinha no Tanganica, desinteressa-se dela, que foge em desespero para junto da família - e para o divórcio óbvio. Entretanto, Ernest e Mary partiam para uma longa jornada de caça em África, onde dois acidentes aéreos praticamente consecutivos os deixam às portas da morte, com sequelas terríveis. Numa sucessão de tragédias, morre a mãe de Hemingway (este, que a odiava, nem vai ao funeral) e o seu amigo e editor de toda a vida, Charles Scribner. Para horror da sua homofobia aguda, um dos filhos é descoberto e preso na casa de banho de um teatro de Los Angeles, vestido de mulher; devastada, a mãe, Pauline Pfeiffer, morre subitamente nessa mesma noite. Sobressaltados pelos golpes de Fulgencio Batista e, mais tarde, de Fidel Castro, os Hemingway abandonam Cuba, a sua amada ilha, vão para Espanha ver o sangue das touradas. De permeio, Hemingway conquista o Nobel em 1954, mas apesar do júbilo triunfal por ter ganho "a coisa sueca" não se desloca sequer a Estocolmo para receber o prémio. Mary pondera o divórcio, planeia comprar um pequeno apartamento em Nova Iorque, mas recua, dando-lhe uma nova oportunidade, mais uma. Acumulam-se então os efeitos de uma vida de excessos, dominada pelo álcool e pelas bravatas de macho. Internado sob anonimato na clínica Mayo, é sujeito a várias sessões de electrochoques, sem resultados visíveis. Ernest Hemingway suicidou-se com dois tiros na cabeça na sua casa de Ketchum, Idaho, numa manhã de Julho de 1961. Casada em segundas núpcias com um conde bávaro, Adriana Ivancich enforcou-se em Orbetello, Toscânia, Março de 1983..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
É um homem em crise que chega a Veneza no Outono de 1948. À beira dos cinquenta anos, Ernest Hemingway não publicava nada há quase uma década, lutando corpo a corpo com um manuscrito estilhaçado de mais de 900 páginas, livro gigantesco, interminável. Não era feliz no casamento com Mary Welsh, sua quarta mulher, que conhecera em Londres em 1944, quando ambos cobriam a II Guerra..Ao sair de Cuba rumo à Europa, transportando consigo mais de trinta malas, o casal Hemingway não tinha sequer a intenção de visitar Veneza. Ele estivera por perto há muito tempo, mas não chegara a conhecer a cidade: em Julho de 1918, poucos dias após entrar em combate, o jovem aspirante a herói, com apenas 18 anos, foi ferido com gravidade nas margens do Piave e imediatamente evacuado para Milão. Mary também nunca fora a Veneza e, ao fim de quatro anos de casamento com "Papa", sentia falta da vida social de Londres e Paris. O corrupio de gente e as almoçaradas infindáveis na Finca Vigía, as farras constantes e as bebedeiras de rum nos bares de Havana, as pescarias no iate Pilar e as tardes de tiro aos pombos no Club de Cazadores, nada conseguia apagar a memória da Europa sofisticada e das amizades intelectuais que por lá deixara. Além disso, com 37 anos, Mary ansiava ter um filho. Ernest, a entrar na idade madura, já pai de três rapazes, não era entusiasta da ideia..Na escrita, Hemingway ambicionava regressar às glórias pretéritas de Fiesta, de O Adeus às Armas, de Por Quem os Sinos Dobram. Os críticos consideravam-no um autor do passado, sem rasgo nem chama, no ocaso da carreira. Tinha em mãos um projecto literário monumental, uma trilogia de guerra dividida em três partes: a guerra no mar, na terra e no ar. Com isso esperava esmagar a concorrência de consagrados, como William Faulkner, e de jovens autores de sucesso, como Norman Mailer ou Irwin Shaw (este último carregava a agravante de ter sido amante de Mary Welsh). Chamava-lhes "Tolstoys de Brooklyn", invejando o tremendo êxito dos seus livros..É com esse estado de espírito turvo e sombrio que os Hemingway atravessam o Atlântico, tencionando passar o Inverno na Provença, com um salto a Paris. No dia 18 de Setembro de 1948 chegam à Madeira: Ernest desembarca para esticar as pernas em terra firme e para acompanhar Mary num passeio pela lota do Funchal. Dois dias depois, em Lisboa, lê os jornais pela primeira vez, ao fim de duas semanas em alto mar, enquanto bebe aperitivos num bar do porto da cidade. O navio parte para Cannes, mas uma avaria faz o comandante optar por Génova, onde uma multidão tumultuosa de repórteres e fotógrafos aguardava no cais o escritor famoso. Perguntam-lhe se era comunista, questão candente na Itália de 1948, tendo ele respondido que não, que apenas combatera pela liberdade e que era um republicano "à maneira de Garibaldi". Conhecia bem Itália, estivera lá diversas vezes; em Junho de 1922, entrevistara Mussolini, descrevendo-o como "o maior bluff da Europa", o que lhe valera ser banido do país, sendo os seus livros - e os de todos os autores americanos - proibidos pelo regime fascista..Transportados no seu enorme Buick, os Hemingway atravessam a região dos lagos, visitam o mausoléu de D'Annunzio, vão esquiar em Cortina, decidem conhecer Veneza. Aí, hospedam-se no Gritti, em grande estilo. Mary perde-se no turismo e nas compras, Ernest instala-se no Harry"s Bar, apaixona-se pelos canais soturnos, faz amizades boémias entre a decadente nobreza local. Numa caçada aos patos na laguna de Veneza, conhece Adriana Ivancich, uma jovem aristocrata de rara e sedutora beleza, que acabara de terminar o liceu. Com 18 anos, Adriana era da idade dos seus filhos. O resto, expectável: um amor crepuscular de meia-idade, encontros furtivos e passeios de gôndola, as cartas trocadas ao longo dos anos, o escândalo nos jornais e a censura materna, ciúmes contidos de Mary Welsh. Adriana e a mãe chegam a visitar os Hemingway em Cuba, Ernest torna-se benfeitor da família muito para lá do razoável, faz-se amigo do irmão mais velho, a jovem desenha-lhe as capas dos seus romances, para desespero dos editores. Num livro recente, Autumn in Venice, Andrea di Robilant insiste que aquela paixão tardia foi platónica, isenta de contactos carnais, ponto que à distância se afigura totalmente irrelevante. Arrebatado como um adolescente, Hemingway definia a sua relação com Adriana através de uma expressão em castelhano, dizendo que era una cosa sagrada, e é isso o essencial. Adriana Ivancich foi a musa inspiradora que permitiu a Ernest Hemingway vencer o seu bloqueio criativo, escrevendo Na Outra Margem, Entre as Árvores, livro vincadamente autobiográfico - que muitos consideram falhado, quase patético - onde se cruzam em Veneza uma jovem aristocrata, Renata, e um coronel moribundo. As coincidências eram tão óbvias que, para proteger a reputação da amada, Hemingway tudo fez para impedir a edição italiana do livro. Seguiram-se o estrondoso êxito O Velho e o Mar, as memórias de Paris é uma Festa e os romances póstumos Ilhas na Corrente e O Jardim do Éden..O tempo e a vida acabariam por afastá-los. A separação, porém, não trouxe a paz a nenhum deles. O primeiro casamento de Adriana é um desastre: um grego ciumento e possessivo que a obriga a romper relações com "Papa" e a destruir todas as suas cartas. Enquanto aguardava pela anulação de um primeiro casamento, o futuro marido encerra-a longos meses num convento do Sul de Itália; mais tarde, já casados, abandona-a numa fazenda que tinha no Tanganica, desinteressa-se dela, que foge em desespero para junto da família - e para o divórcio óbvio. Entretanto, Ernest e Mary partiam para uma longa jornada de caça em África, onde dois acidentes aéreos praticamente consecutivos os deixam às portas da morte, com sequelas terríveis. Numa sucessão de tragédias, morre a mãe de Hemingway (este, que a odiava, nem vai ao funeral) e o seu amigo e editor de toda a vida, Charles Scribner. Para horror da sua homofobia aguda, um dos filhos é descoberto e preso na casa de banho de um teatro de Los Angeles, vestido de mulher; devastada, a mãe, Pauline Pfeiffer, morre subitamente nessa mesma noite. Sobressaltados pelos golpes de Fulgencio Batista e, mais tarde, de Fidel Castro, os Hemingway abandonam Cuba, a sua amada ilha, vão para Espanha ver o sangue das touradas. De permeio, Hemingway conquista o Nobel em 1954, mas apesar do júbilo triunfal por ter ganho "a coisa sueca" não se desloca sequer a Estocolmo para receber o prémio. Mary pondera o divórcio, planeia comprar um pequeno apartamento em Nova Iorque, mas recua, dando-lhe uma nova oportunidade, mais uma. Acumulam-se então os efeitos de uma vida de excessos, dominada pelo álcool e pelas bravatas de macho. Internado sob anonimato na clínica Mayo, é sujeito a várias sessões de electrochoques, sem resultados visíveis. Ernest Hemingway suicidou-se com dois tiros na cabeça na sua casa de Ketchum, Idaho, numa manhã de Julho de 1961. Casada em segundas núpcias com um conde bávaro, Adriana Ivancich enforcou-se em Orbetello, Toscânia, Março de 1983..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.