Nunca é só isso

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Estou meses sem ir a Coimbra e numa semana fui duas vezes a Coimbra. Até parece uma anedota que havia, muito ordinária, que acabava numa carruagem de comboio com um senhor a dizer vamos todos para Coimbra, vamos todos para Coimbra, mas também não me lembro bem e não é o melhor sítio para a contar mesmo que me lembrasse. Dizia que fui duas vezes a Coimbra numa semana, e das duas encontrei pessoas conhecidas de que não estava à espera, no comboio, no café, na rua. Duas coisas que acontecem cada vez menos, as pessoas contarem anedotas umas às outras, muito menos ordinárias, que não se pode, e encontrarem-se por acaso, que não acontece. E não se encontram por acaso, porque mais dificilmente se desencontram. Para encontrar é preciso desencontrar, e quando o contacto é constante, quando a aparência de acompanhamento da vida do outro rodeia tudo o que fazemos, é difícil sentir o desencontro.

Mas numa dessas idas a Coimbra na mesma semana também conheci uma pessoa que não conhecia, uma pessoa fascinante. Carlos Bandeirense Mirandópolis, um professor de Direito brasileiro, educador, resistente político, falecido em 1984, perseguido pela ditadura militar. Os seus escritos foram muito citados por advogados e até por tribunais brasileiros. Dizem que a sua vida inspirou muita gente. Mas aquilo por que a sua vida ficou mais conhecida foi por não ter existido.

Carlos Bandeirense foi criação de dois advogados de São Paulo que em 2010 quiseram pregar uma partida a um estagiário muito agarrado a copiar sem critério tudo o que apanhava na internet. Criaram a entrada de Bandeirense na Wikipedia. Bandeirense ganhou vida na enciclopédia e fora dela, até que em 2016 foi descoberto, retirado do ar, e-eutanaziado, morreu, hoje apenas vive em notícias mas já sem perfil de Wikipedia.

Era isso o que me levava a Coimbra, falar no encontro da Associação dos Magistrados da Jurisdição Administrativa e Fiscal de Portugal, e o tema, provocatório "Pode um juiz citar a Wikipedia". A conclusão, a minha, é que depende muito do objetivo da citação, nunca podendo ser a fonte única de uma conclusão precisamente tendo em conta a mutabilidade e a fiabilidade da Wikipedia não serem absolutas. Há menos de uma centena de decisões portuguesas que referem a Wikipedia, e a citação é feita pelo tribunal em si (e não por exemplo pelas partes) numa percentagem muito pequena destas decisões. Numa interessante decisão, o tribunal recorre à Wikipedia para fundamentar o argumento de que é normal haver javalis em Portugal, e que por isso o concessionário de uma autoestrada tem de pagar uma indemnização a um automobilista atingido, que javalis não é um evento raro, não foi um crocodilo nem um unicórnio que se lhe atravessou à frente.

Mas nisto dos bichos muda muita coisa. Em Coimbra, fora do Encontro, as pessoas que encontro por acaso, por acaso falam-me todas de animais, parecem combinadas umas com as outras. Falam-me das leis feitas em Lisboa, mas não das leis feitas em Lisboa num sentido mais comum da queixa de leis centralizadoras. Ouço outra versão disso, mais precisa, queixas de leis sobre a proibição de abates de animais e a existência de alcateias de cães selvagens que atacam pessoas; da praga da vespa-asiática e de um conjunto de respostas jurídicas e regulamentares desfasadas da realidade técnica, financeira e social para o combate à vespa, longe da realidade real de quem tem um ninho no casebre; da limpeza de florestas como ideia e da limpeza de florestas como realidade.

Carlos Bandeirense foi amigo de Chico Buarque e ajudou-o a compor o Samba de Orly, em que se canta o exílio, o convite a Chico para ir mudar de ares para Paris feito pela ditadura. Hoje não era bom dia para isso, para ir para Paris, por causa dos coletes amarelos. Por lá, no discurso dos coletes amarelos, um discurso em vários níveis, de coerência ainda por descobrir e intenções por perceber, mesmo assim, nesse discurso, há uma parte que tem que ver com isto tudo, com uma sensação e um abandono, ou pior do que isso, de uma intromissão desajeitada, mal comunicada, de duas linguagens, de mundos que crescem diferentes e separados, uns parece que querem resolver problemas de ninguém agravando os problemas dos outros. Foi a propósito do preço do combustível, da velocidade das autoestradas, é sempre a propósito de algo que castiga a carteira de quem tem menos. Mas nunca é só isso.

Advogado

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