Só para prevenir...
Para reduzir os acidentes de carro, vai ser proibido andar em veículos motorizados. Ainda não aconteceu, mas é uma ideia com potencial de vingar na conjuntura governativa pós-covid, que passa por censurar a liberdade de todos sempre que há um mero risco de uma eventualidade poder vir a acontecer a alguém.
O choque pela autorização a uma festa na Tapada da Ajuda em pleno estado de alerta percorreu toda a oposição na Câmara de Lisboa. Do ultraje pelo desrespeito mostrado pelas regras decretadas pelo governo de António Costa - escaldado com os piores fogos da nossa história, em que morreram mais de 70 pessoas e se perdeu uma imensa área florestal, incluindo no secular Pinhal de Leiria - à necessidade de responsabilização política imediata e apuramento do nível de conhecimento do líder do executivo lisboeta, vieram os opositores da vitória de Carlos Moedas em coro pedir-lhe contas.
Esquecida das exceções impostas para a Festa do Avante! e para as manifestações que levaram centenas à rua no 1.º de Maio de 2020, enquanto todo o Portugal definhava, trancado em casa por um estado de emergência que encerrara empresas e escolas, proibira eventos e ajuntamentos, fechara portas a lojas e restaurantes e limitara brutalmente todas as ações dos cidadãos, cortesia de um vírus em tudo ainda desconhecido, exceto no elevadíssimo risco de contágio, gravidade de efeitos e mortalidade, a esquerda, mais ou menos extrema, insurge-se. Como pôde a autarquia desafiar as regras do governo?
Acomodada à nova forma de fazer as coisas que a pandemia trouxe, vem a oposição rasgar as vestes e pedir responsabilidades a quem ousa quebrar as leis que agora o governo cria à medida de situações concretas. Mesmo sem acontecer coisa nenhuma, vem clamar medidas exemplares, implacáveis, como a capacidade de Eduardo Cabrita sobreviver a sucessivos escândalos enquanto ministro. Mesmo não sendo a festa de um campeonato pelo confinamento, vem exigir consequências de uma firmeza comparável apenas à forma como Fernando Medina, então ainda a conduzir os destinos de Lisboa, resolveu em menos de um mês o envio dos dados pessoais de manifestantes russos a Moscovo - um episódio que todos conhecemos como Russiagate e que vai custar uns milhões à cidade -, exonerando, graças à abstenção do PCP e aprovação socialista, um funcionário de 33 anos da autarquia, a quem poucos meses antes entregara a gestão da segurança.
Dois males (ou 200) não fazem um bem. Se há um caso, que se investigue, entenda-se o que esteve em causa, se houve ou não regras quebradas, se há medidas a tomar. Talvez fosse bom, porém, graduar a gravidade dos factos. E das consequências.
Mas, antes de mais, convinha perceber se queremos mesmo aceitar que quem nos governa constantemente recorra, sem grande filtro ou escrutínio, a estados de exceção que interferem com a vida e a liberdade de cada um de nós. Se estamos prontos para sermos todos tratados como inimputáveis e criminosos. Só para prevenir.