As execuções do Estado Islâmico fizeram abalar o mundo. Em nome de uma qualquer loucura, pessoas foram decapitadas ou regadas com gasolina e deixadas a arder até morrer. Aconteceu no Norte da Síria e a comunidade internacional uniu-se contra aqueles selvagens..Infelizmente não precisamos de ir muito longe para ter o mesmo espanto. Mulheres decapitadas, queimadas até morrerem, estranguladas, agredidas até sucumbirem, sequestradas ou violadas, são um acontecimento comum em Portugal. Ao lado da nossa porta. Durante anos, foram notícias de segundo nível num alinhamento de qualquer telejornal ou edição impressa, fruto da nossa rendição coletiva à frequência. Sem uma indignação tumultuosa, imparável, entre nós todos. Uma espécie de circunstância passional do ser humano a que nos habituamos..O Diário de Notícias e o V Digital começaram ontem a publicar histórias de vida de mulheres mortas narradas por figuras públicas - a par de relatos de sobreviventes que foram capazes de falar sobre si. O planeamento deste trabalho iniciou-se nos primeiros dias janeiro, antes mesmo de nos espantarmos com o ritmo vertiginoso de novas vítimas (já 12 até agora) - a que se juntava o número que julgávamos absurdo de 2018 (28). Quanto ao género, infelizmente não há dúvidas: 80% são mulheres e 83% dos agressores são homens..Quando os números têm esta expressão, as velhas palavras ficam obsoletas. O relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima dizia que, entre 2013 e 2017, foi em casa que se registaram 77% dos casos violentos. Ou seja, em ambiente "doméstico". E a junção das duas coisas gera uma expressão que minimiza o problema - "violência doméstica" é coisa comum, que sempre houve, num território social onde ninguém mete a colher mas, entretanto, estão lá as facas, os martelos ou bastões. E se as notícias refletem essa banalidade, nas esquadras essa mesma consciência social repetiu-se durante tempo o eco da nossa demissão coletiva: crime menor, uma quase intromissão do Estado no "lar". Nos tribunais, também: coisa da ordem do emocional ou do caricato..(O nosso famoso juiz, e alguns do que pensam como ele, não nasceram ontem. Se no coração da magistratura nenhum alvoroço sucedeu durante décadas, mesmo depois de escalpelizadas as incidências mais atrozes dos milhares de casos julgados, é porque todos estávamos rendidos à situação. Menos as vítimas.).Portanto, temos mesmo de mudar os conceitos com que avaliamos esta realidade. Criar gradações. Alterar a tipificação dos crimes, com novos níveis, tornando assim as sentenças adequadas à violência em causa. E só chegamos lá através das palavras..Qual é hoje o pior crime no mundo? O terrorismo? E o que é o terrorismo? É matar gente indefesa (tantas vezes com crianças incluídas)? O terrorismo é a instalação de um clima de pânico permanente? Pois se é isso, chame-se a esta nossa realidade "terrorismo". Em Portugal há "terrorismo". Os números dizem que temos uma prática reiterada de "terrorismo sobre mulheres"..Para sacudirmos esta conclusão vexatória sobre a nossa existência, precisamos então da mudança de paradigma. E ele só acontecerá com fortíssima recriminação social e penal. No terrorismo global não há grandes dúvidas sobre isso. Nesta epidemia de flagrante terror sobre as mulheres também não deverá haver..Em Portugal há uma desigualdade de forças em jogo que não deixa margem para dúvidas. Salvaguardando raras exceções, as mulheres portuguesas têm menos poder físico e económico, maior esgotamento por trabalho doméstico e com os filhos, e é em cima delas que ficam quase sempre os cuidados com os progenitores. São as primeiras a abandonar o mercado de trabalho para funções de sacrifício familiar. São as últimas a ter acesso à Educação se escassear o rendimento. (Isto é verdade mesmo em colégios privados - no limite, à falta de dinheiro para todos, vai o menino). Numa palavra: falta-lhes "Poder". A todos os níveis. E isso paga-se..O baixo rendimento per capita deixa-nos ainda mais à mercê desta espiral. Quando vemos por dentro estas vidas reais - e a espiral de loucura que se gera nas famílias ou nestas aterrorizantes relações pessoais -, compreendemos melhor o que é o nosso subdesenvolvimento educacional e económico..(Uma nota: enquanto as mulheres não tiverem acesso à liderança/decisões da generalidade das religiões do mundo, o diapasão ético que transborda para a sociedade é masculino. Isso menoriza sempre as virtudes, necessidades e sacrifícios das mulheres. Parece uma questão lateral, mas não é, porque a mais antiga instituição "autoriza" a desigualdade nos modelos sociais em redor. A voz de um Deus igualitário e fraternal legitima e perpetua a maior hipocrisia do mundo: a exclusão por género. Qual o sexo da alma?).Há um outro fator essencial sem o qual isto não se resolve: o tratamento dos agressores. Porque a sua reincidência é alta. Como chegam estas pessoas a esta escalada demencial? O que lhes aconteceu lá trás? Como podem ser ajudadas?.Além disto, talvez não esteja devidamente estudado o impacto do contexto da guerra de África no nosso subconsciente coletivo - quer pelas lesões psicológicas de quem lá esteve, quer pelos danos criados depois nas famílias e descendentes. Obviamente o álcool, os estupefacientes, o nível de violência audiovisual disponível, a lógica de gangue/grupo, e de uma forma mais geral a tensão social e competição das sociedades modernas, potencia as mais bizarras deformidades mentais nos seres humanos..Mas esta é a conversa habitual. Em termos práticos, há uma coisa que tem de ser garantida em Portugal e em qualquer parte do mundo: os direitos humanos. Mais obscenamente: os direitos de um ser humano a viver em paz na sua própria casa. A poder amar sem medo ou não amar sem medo..Portanto, algo de absurdamente doentio está ainda à nossa volta. Temos de combater incessantemente este terror físico e mental que afeta tanta gente indefesa. Se fomos capazes de lutar com determinação contra a pedofilia, também o seremos contra estas formas de terrorismo conjugal que, em Portugal, sem qualquer dúvida, significam quase sempre terrorismo sobre as mulheres. E se é preciso mudar-se a Constituição para que algo de verdadeiramente refundador aconteça, então mude-se. Só faltava que, de vez em quando, não pudéssemos partir as tábuas da lei para destruir o sagrado bezerro-macho que se mantém no centro da nossa sociedade. O mundo mudou. Não há sexos, há pessoas iguais..P.S. - Sónia Tavares é a primeira figura pública a contar pela sua voz como morreu Vera Silva. E Zelinda Coscurão diz, na primeira pessoa, como se tenta reerguer depois de situações de agressões e terror que quase a mataram. Quatro episódios de histórias de vida em dn.pt (as seguintes serão publicadas nas segundas-feiras 11, 18 e 25 de Março).
As execuções do Estado Islâmico fizeram abalar o mundo. Em nome de uma qualquer loucura, pessoas foram decapitadas ou regadas com gasolina e deixadas a arder até morrer. Aconteceu no Norte da Síria e a comunidade internacional uniu-se contra aqueles selvagens..Infelizmente não precisamos de ir muito longe para ter o mesmo espanto. Mulheres decapitadas, queimadas até morrerem, estranguladas, agredidas até sucumbirem, sequestradas ou violadas, são um acontecimento comum em Portugal. Ao lado da nossa porta. Durante anos, foram notícias de segundo nível num alinhamento de qualquer telejornal ou edição impressa, fruto da nossa rendição coletiva à frequência. Sem uma indignação tumultuosa, imparável, entre nós todos. Uma espécie de circunstância passional do ser humano a que nos habituamos..O Diário de Notícias e o V Digital começaram ontem a publicar histórias de vida de mulheres mortas narradas por figuras públicas - a par de relatos de sobreviventes que foram capazes de falar sobre si. O planeamento deste trabalho iniciou-se nos primeiros dias janeiro, antes mesmo de nos espantarmos com o ritmo vertiginoso de novas vítimas (já 12 até agora) - a que se juntava o número que julgávamos absurdo de 2018 (28). Quanto ao género, infelizmente não há dúvidas: 80% são mulheres e 83% dos agressores são homens..Quando os números têm esta expressão, as velhas palavras ficam obsoletas. O relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima dizia que, entre 2013 e 2017, foi em casa que se registaram 77% dos casos violentos. Ou seja, em ambiente "doméstico". E a junção das duas coisas gera uma expressão que minimiza o problema - "violência doméstica" é coisa comum, que sempre houve, num território social onde ninguém mete a colher mas, entretanto, estão lá as facas, os martelos ou bastões. E se as notícias refletem essa banalidade, nas esquadras essa mesma consciência social repetiu-se durante tempo o eco da nossa demissão coletiva: crime menor, uma quase intromissão do Estado no "lar". Nos tribunais, também: coisa da ordem do emocional ou do caricato..(O nosso famoso juiz, e alguns do que pensam como ele, não nasceram ontem. Se no coração da magistratura nenhum alvoroço sucedeu durante décadas, mesmo depois de escalpelizadas as incidências mais atrozes dos milhares de casos julgados, é porque todos estávamos rendidos à situação. Menos as vítimas.).Portanto, temos mesmo de mudar os conceitos com que avaliamos esta realidade. Criar gradações. Alterar a tipificação dos crimes, com novos níveis, tornando assim as sentenças adequadas à violência em causa. E só chegamos lá através das palavras..Qual é hoje o pior crime no mundo? O terrorismo? E o que é o terrorismo? É matar gente indefesa (tantas vezes com crianças incluídas)? O terrorismo é a instalação de um clima de pânico permanente? Pois se é isso, chame-se a esta nossa realidade "terrorismo". Em Portugal há "terrorismo". Os números dizem que temos uma prática reiterada de "terrorismo sobre mulheres"..Para sacudirmos esta conclusão vexatória sobre a nossa existência, precisamos então da mudança de paradigma. E ele só acontecerá com fortíssima recriminação social e penal. No terrorismo global não há grandes dúvidas sobre isso. Nesta epidemia de flagrante terror sobre as mulheres também não deverá haver..Em Portugal há uma desigualdade de forças em jogo que não deixa margem para dúvidas. Salvaguardando raras exceções, as mulheres portuguesas têm menos poder físico e económico, maior esgotamento por trabalho doméstico e com os filhos, e é em cima delas que ficam quase sempre os cuidados com os progenitores. São as primeiras a abandonar o mercado de trabalho para funções de sacrifício familiar. São as últimas a ter acesso à Educação se escassear o rendimento. (Isto é verdade mesmo em colégios privados - no limite, à falta de dinheiro para todos, vai o menino). Numa palavra: falta-lhes "Poder". A todos os níveis. E isso paga-se..O baixo rendimento per capita deixa-nos ainda mais à mercê desta espiral. Quando vemos por dentro estas vidas reais - e a espiral de loucura que se gera nas famílias ou nestas aterrorizantes relações pessoais -, compreendemos melhor o que é o nosso subdesenvolvimento educacional e económico..(Uma nota: enquanto as mulheres não tiverem acesso à liderança/decisões da generalidade das religiões do mundo, o diapasão ético que transborda para a sociedade é masculino. Isso menoriza sempre as virtudes, necessidades e sacrifícios das mulheres. Parece uma questão lateral, mas não é, porque a mais antiga instituição "autoriza" a desigualdade nos modelos sociais em redor. A voz de um Deus igualitário e fraternal legitima e perpetua a maior hipocrisia do mundo: a exclusão por género. Qual o sexo da alma?).Há um outro fator essencial sem o qual isto não se resolve: o tratamento dos agressores. Porque a sua reincidência é alta. Como chegam estas pessoas a esta escalada demencial? O que lhes aconteceu lá trás? Como podem ser ajudadas?.Além disto, talvez não esteja devidamente estudado o impacto do contexto da guerra de África no nosso subconsciente coletivo - quer pelas lesões psicológicas de quem lá esteve, quer pelos danos criados depois nas famílias e descendentes. Obviamente o álcool, os estupefacientes, o nível de violência audiovisual disponível, a lógica de gangue/grupo, e de uma forma mais geral a tensão social e competição das sociedades modernas, potencia as mais bizarras deformidades mentais nos seres humanos..Mas esta é a conversa habitual. Em termos práticos, há uma coisa que tem de ser garantida em Portugal e em qualquer parte do mundo: os direitos humanos. Mais obscenamente: os direitos de um ser humano a viver em paz na sua própria casa. A poder amar sem medo ou não amar sem medo..Portanto, algo de absurdamente doentio está ainda à nossa volta. Temos de combater incessantemente este terror físico e mental que afeta tanta gente indefesa. Se fomos capazes de lutar com determinação contra a pedofilia, também o seremos contra estas formas de terrorismo conjugal que, em Portugal, sem qualquer dúvida, significam quase sempre terrorismo sobre as mulheres. E se é preciso mudar-se a Constituição para que algo de verdadeiramente refundador aconteça, então mude-se. Só faltava que, de vez em quando, não pudéssemos partir as tábuas da lei para destruir o sagrado bezerro-macho que se mantém no centro da nossa sociedade. O mundo mudou. Não há sexos, há pessoas iguais..P.S. - Sónia Tavares é a primeira figura pública a contar pela sua voz como morreu Vera Silva. E Zelinda Coscurão diz, na primeira pessoa, como se tenta reerguer depois de situações de agressões e terror que quase a mataram. Quatro episódios de histórias de vida em dn.pt (as seguintes serão publicadas nas segundas-feiras 11, 18 e 25 de Março).