República Centro Africana. 2500 soldados já foram treinados sob comando português
É a estação das chuvas em Bangui, o que na República Centro-Africana (RCA) acontece na maior parte do ano.
Habituado ao africanamente intenso cheiro da terra molhada, desde os tempos que acompanhou o pai em comissões de serviço em Angola e Moçambique, o brigadeiro-general do Exército Paulo de Abreu não estranhou a voluptuosidade das torrentes de água nem o sol abrasador que seca num ápice as terras.
Está há mais de oito meses na RCA à frente da Missão de Treino da União Europeia na República Centro-Africana (EUTM-RCA), que tem como objetivo recrutar e treinar os militares que vão integrar as Forças Armadas deste país.
É um rosto de sorriso aberto que vemos no ecrã do computador a mais de 6 mil quilómetros de distância (por terra), tranquilo, palavras seguras e objetivas a explicar o que fazem os 55 militares portugueses desta missão, aos quais se juntaram mais seis das Forças Armadas brasileiras.
Está no seu gabinete no quartel-general, no Campo Moana/M"Poko, junto do aeroporto de Bangui.
Ali está também a unidade francesa, que intercala o comando da EUTM-RCA com Portugal, e a MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana), no âmbito da qual estão cerca de 200 militares portugueses do Exército e da Força Aérea. Ao todo, em ambas as missões, estão 14 nacionalidades.
Praticamente todos os dias deixa o conforto fresco e seguro destas instalações e segue para o coração da cidade onde tem reuniões de trabalho.
Nesse percurso é a África da sua infância e juventude que lhe entra pela janela do carro. "Temos de percorrer a maior avenida, que vai do aeroporto a Bangui, que é conhecida pela avenida dos combatentes. É um mercado de um lado e do outro da estrada, onde tudo se compra e tudo se vende, comidas de toda a espécie, roupas de clubes internacionais, peças de carros, alguidares. Efervescente, cheio de cores e gentes. Aprendi a admirar a enorme capacidade de resiliência destas pessoas no seu dia-a-dia, a tentar sobreviver a todo o custo", assinala.
A EUTM-RCA, afiança o brigadeiro-general, contribui "com a sua ação de aconselhamento estratégico e de apoio militar para a constituição de umas Forças Armadas da RCA (FACA) modernas, eficazes, etnicamente equilibradas e democraticamente responsáveis".
Com esse objetivo, "proporcionamos apoio ao governo da RCA na reforma do setor da Defesa, incluindo o processo de desarmamento, desmobilização, reintegração e repatriamento, que contribui para o esforço global de reconciliação do país".
A missão de treino assenta em três pilares: o estratégico, que garante o aconselhamento estratégico às FACA, em particular nas áreas da organização e emprego de forças, formação e treino, sistemas de comunicação, gestão de recursos humanos, planeamento logístico e gestão financeira/orçamentação; o da educação, responsável pela formação especializada a todos os oficiais, sargentos e praças das FACA, em áreas como transmissões, topografia, logística, socorrismo e direito humanitário internacional; e o de treino operacional, que trata da formação básica dos militares das FACA, treinando numa fase inicial os instrutores e, numa segunda fase, apoiando o desempenho destes.
Desde o início da EUTM-RCA, que arrancou em 2016, Portugal já contribuiu com um total de 257 militares, nas diferentes funções de comando, Estado-Maior e pilares da sua estrutura.
Paulo de Abreu é o segundo oficial-general português a liderar. Em 2018, Portugal constituiu-se como lead nation da missão e nessa altura assumiu o seu comando o brigadeiro-general Hermínio Maio, também do Exército.
"Temos reuniões periódicas com o presidente da República, Faustin Archange Touadera (uma vez por mês no mínimo), com ministros do governo, com os chefes das Forças Armadas, com as várias delegações da UE, representantes de vários países, principalmente dos que fazem fronteira (Chade, Sudão, Camarões, Gabão, Ruanda e Etiópia), com os comandantes da MINUSCA, do Banco Mundial, de várias das principais organizações internacionais... Bangui é como uma pequena guerra dos tronos", assevera Paulo de Abreu.
Nestes oito meses, desde que iniciou a sua missão, a equipa de Paulo de Abreu já formou cerca de 2500 centro-africanos para serem soldados das Forças Armadas daquele país.
Contas feitas e enviadas ao DN pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), desde setembro 1659 recrutas receberam treino básico dos portugueses nos centros de formação de Bouar e de Kassai/Bangui, entre os quais 272 ex-combatentes dos grupos armados, integrados no âmbito do Acordo de Paz. Foram também formados sargentos e instrutores, 26 destes para unidades especiais de segurança.
Portugal está também na génese da criação e do treino de 350 militares de um recém-nascido batalhão de infantaria, com cerca de 660 militares, que integra as forças especiais anfíbias e terão um papel determinante na segurança e na defesa do Estado.
"Criada em janeiro de 2021 na sequência de um decreto presidencial, esta nova unidade militar irá integrar, a partir de agosto do corrente ano, a estrutura das Forças Armadas da RCA. A execução deste projeto foi confiada pelo presidente da República da RCA à EUTM", salienta o porta-voz do EMGFA.
A formação das FACA inclui, igualmente, a realização de palestras no âmbito dos direitos humanos e de género.
"Os militares portugueses demonstram diariamente o seu valor como pessoas e como militares, respeitando todos aqueles com quem têm de trabalhar, sendo igualmente respeitados e admirados pelos seus homólogos. A entrega e a motivação dos militares portugueses estão presentes no trabalho quotidiano, existindo um claro sentimento que estamos a cumprir bem a missão que nos foi confiada", assegura Paulo de Abreu.
Temos então ADN português nas Forças Armadas da RCA? O brigadeiro-general sorri à pergunta. "Sem dúvida que têm ADN da União Europeia, pois o programa de formação militar foi preparado a esse nível e os Estados membros seguem os mesmos padrões".
No entanto, acrescenta, "os portugueses, em geral, e o militar português em particular, são muito especiais e são de facto muito apreciados aqui na RCA".
E não é só pela presença mais recente dos militares portugueses nas missões da UE e da ONU, como atesta o antigo segundo-comandante da MINUSCA, tenente-general Marco Serronha, no livro publicado pelo EMGFA intitulado "Do Caos à Esperança - as Forças Nacionais Destacadas da ONU na RCA".
Há "um facto, desconhecido de muitos, sobre a história da presença lusa nesta região. Nos inícios do século XX, portugueses que habitavam na região do atual Congo Brazzaville, essencialmente fazendeiros e comerciantes, chegaram a Bangui e aí se estabeleceram alguns deles, tendo-se outros deslocado para as regiões onde se produzia café e algodão (...), onde constituíram explorações agrícolas que ainda hoje são referidas pelos cidadãos centro-africanos de mais idade".
Lembra ainda que "outra das atividades a que os portugueses se dedicaram foi o comércio, podendo ainda hoje ver-se edifícios nas zonas centrais das principais cidades da RCA, onde estão inscritos nomes das sociedades comerciais portuguesas", como é o caso do edifício no centro de Bangui onde se pode ler em grandes letras "Moura & Gouveia".
Paulo de Abreu confirma e embora não se tenha cruzado com muitos portugueses residentes, encontrou alguns descendentes. "Sempre que falei com locais, têm sempre comentários bons a respeito dos portugueses. A comunidade portuguesa propriamente dita não deve ser mais de uma dezena. Mas ainda há descendentes, muitos Silvas", afirma.
O brigadeiro-general e a sua equipa têm mais quatro meses pela frente na RCA. Não estão em contagem decrescente, garante, mas a saudade da família aperta, apenas atenuada com as chamadas via Skype, praticamente todos os dias.
Com o dia 10 de junho a aproximar-se, os militares portugueses já estão a pensar na comemoração em Moana/M"Poko. "Vamos organizar um almoço com paladares portugueses para partilhar com os outros militares das 14 diferentes nacionalidades. Provavelmente vai ser um bacalhau à Brás, que é um prato de que, em geral, todos gostam", afiança Paulo Abreu.
O Brigadeiro General, Paulo Manuel Simões das Neves de Abreu, nasceu em Praia do Ribatejo (Vila Nova da Barquinha), em 13 de março de 1964, e foi promovido ao atual posto em 07 de agosto de 2020. É oficial do Exército e tem o curso de Cavalaria da Academia Militar.
Desde capitão que a instrução de militares passou a dominar a sua atividade, quando foi colocado na Escola Prática de Cavalaria em Santarém onde desempenhou a função de Comandante do Esquadrão de Instrução, Adjunto da Direção de Estudos e Instrução e cumulativamente Instrutor de Tática.
Em 2000, já no posto de Major foi colocado no Instituto de Altos Estudos Militares onde desempenhou funções de docência na Área de Ensino de Tática nos Gabinetes de Defensiva, Ofensiva e na Área de Operações Conjuntas e Combinadas.
Como Tenente-Coronel, desempenhou, no Instituto de Estudos Superiores Militares, a função de Professor na Área de Ensino de Operações aos Cursos de Promoção a Oficial Superior, Curso de Estado-maior Conjunto e Curso de Promoção a Oficial General.
Possui várias condecorações de que se destacam, três Medalhas de Serviços Distintos grau Prata, as Medalhas de Mérito Militar de 1ª, 2ª e 3ª Classe, a Medalha D. Afonso Henriques - Mérito do Exército de 1ª e 2ª Classe e a Medalha de Ouro de Comportamento Exemplar. Foi distinguido com a Ordem Militar de Avis - Grau Comendador.