Democratas, organizem-se

Foi uma semana vantajosa para Trump mas desastrosa para a república constitucional americana.<br/> Os democratas embrulharam-se numa confusão de amadorismo inexplicável. Os republicanos oficializaram o culto a Trump sem um pingo de seriedade. Pelo meio, o presidente descreveu o país como bem lhe apeteceu. Estará a reeleição assegurada?
Publicado a
Atualizado a

Entre as trapalhadas democratas no Iowa e a absolvição pelo culto republicano no Senado, Trump pintou o Estado da União como bem quis. Tal como Bill Clinton logo após o fim do impeachment em 1999, não mencionou o processo no Senado, optando por uma construção hiperbólica e autoelogiosa sobre a economia, a educação, a saúde, a defesa e a política externa, como se a América tivesse nascido a 20 de janeiro de 2017, quando tomou posse no Capitólio sob juramento constitucional.

É verdade que a economia está bem, tal como a generalidade das economias mundiais, que o desemprego está em baixa como há meio século não se via, e que os rendimentos da classe média aumentaram. Mas nada disto nasceu com Trump, nem pode ser visto tão cor-de-rosa como ele pinta. Primeiro, desde 2010 que o PIB tem estado a crescer sustentadamente, numa média de 2,2% ao ano até à tomada de posse de Trump. Desde então, a média tem estado nos 2,3%, o que não é muito diferente do ciclo que se vivia. Aliás, a singularidade histórica com que Trump insiste em caracterizar o seu mandato está bem longe do período entre 1997 e 2000 (4,5%/ano) ou entre 1947 e 1973 (4%). No caso do desemprego, entre 2009 e 2017, a queda foi de 11% para 4,5%, um recuo brutal se tivermos em conta o impacto tremendo da crise financeira de 2008-2009. Baixar 1,2 pontos percentuais é sempre importante no combate ao desemprego, mas não faz do mandato de Trump um período extraordinariamente acutilante nessa frente.

Aliás, os últimos três anos de Obama viram a economia criar mensalmente 227 mil novos empregos, enquanto nos três primeiros de Trump foram criados 191 mil por mês (dados do Departamento do Trabalho). Os rendimentos médios, o tal "blue color boom", estavam a crescer desde 2015 e os efeitos do choque fiscal aprovado pela atual administração foram bem mais sentidos em quem tem rendimentos altos e nas grandes empresas do que propriamente no americano médio. Vale a pena, por exemplo, lembrar a queda acentuada na criação de emprego no setor primário durante 2019, para percebermos porque é que Trump quer acelerar um acordo comercial com a China, depois de medir os efeitos perversos da beligerância. O que temos, isso sim, são índices de confiança do consumidor em alta misturados com um clima económico que na generalidade já se sentia nos anos da anterior administração.

Bem sei que a demonstração da verdade dos factos é desprezível para a falange de indefetíveis do presidente americano e que um discurso habilidoso pode, como aconteceu, ser suficientemente eficaz para marcar um arranque auspicioso da campanha eleitoral, mas nem tudo é uma fatalidade na América de Trump. Por um lado, a sua base indestrutível não é ainda suficiente para vencer a reeleição. Vai ser preciso mobilizar independentes e muitos dos que, olhando para a alternativa democrata, preferem não mexer no que existe. Por outro lado, os efeitos do fim do impeachment, que muitos decretaram como uma apoteótica reeleição antecipada em nove meses, merecem outras leituras mais complexas do que essa.

Desde logo, a forma como ficou exposta a seriedade do julgamento por parte de todos os senadores republicanos à exceção de Mitt Romney, o primeiro na história americana a votar favoravelmente a destituição de um presidente do próprio partido. O veto maioritário da bancada à audição de novas testemunhas-chave, num processo gravíssimo de abuso de poder com vista a obter um favorecimento de um estado estrangeiro para prejudicar um adversário direto à Casa Branca, continua a contrastar com a maioria dos americanos que em sondagens se mostram convictos da culpa presidencial e da importância de ter ouvido novas testemunhas. Ou seja, o desfasamento entre expectativas e convicções populares e o comportamento republicano persiste. Importa também dizer que, ao contrário do que sucedeu com a subida de popularidade de Bill Clinton após o fim do julgamento no Senado, a de Trump teve uma ascensão bastante mais modesta. É certo que atingiu um pico de 49%, mas não há magnanimidade imparável que implique a qualquer adversário atirar a toalha ao chão.

O que certamente resulta destas semanas no Senado é a consolidação do GOP como um partido de culto trumpista e já não como um partido estrutural na defesa da constituição e, por inerência, dos limites ao livre-arbítrio do poder presidencial. O que o partido republicano sinaliza com os 94% de apoio popular a Trump é só isto: não apenas passou a ser legítimo e aceite coagir um Estado para benefício privado, como um julgamento transparente em busca da verdade dos factos deixou de merecer qualquer respeito. O dia seguinte à sentença mostrou, esse sim, o clima de caça às bruxas que Trump quer seguir, por pura vingança sobre todos os que tentaram pugnar pela defesa da saúde do Estado de direito e da república constitucional americana. Esta avaliação vai permanecer junto de todos aqueles que recusam votar em Trump. É esta alargada frente que os democratas têm de federar e mobilizar para novembro: o voto anti-Trump.

O que temos hoje é um desnorte profundo no campo democrata capaz de montar esta equação. No Iowa o amadorismo impôs-se. A veterania dos principais candidatos não é um princípio que responda a um virar de página necessário, mas o que existe de juventude também não assegura competência para domar o porta-aviões da Casa Branca. Programaticamente, as divergências dificultam uma mensagem clara e mobilizável numa plataforma eleitoral muito heterogénea. Tal como a ausência de um mensageiro-líder. Enquanto isto não for minimamente resolvido e clarificado, Trump tem a vantagem do seu lado. A partir do momento em que a primeira parte da equação eleitoral ficar arrumada, então podemos começar a fazer cálculos para novembro com todos os dados em cima da mesa.

Em democracia não há fatalismos.

Investigador universitário

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt