Não preciso de dizer o quanto não gosto de Trump. É, portanto, incompreensível o que me fez ficar acordado até às 3.30 de quarta-feira para ver o discurso do Estado da Nação. Com Obama conseguia dormir. Estava minimamente seguro. Com Trump ninguém está. Vejo Stephen Colbert (SIC Radical) em bingewatch como quem vê uma novela, o The New York Times é para mim um jornal do bairro e a CNN passou a ser o meu canal - e Fareed Zakaria o seu profeta. Devo estar doente. Ou o mundo. Talvez os dois. Basta olhar para a capa de ontem da The Economist (que andou anos quase "negacionista"... e ver o título): "Alerta Crude - a verdade sobre o petróleo e as alterações climáticas"..A maior empresa do mundo de carburantes, a Exxon Mobil, prevê aumentar a exploração de petróleo em 25% e assegura que até 2030 a procura mundial vai crescer 13%. O facto de sermos cada vez mais seres humanos no planeta explicará certamente boa parte deste crescimento. A nossa inconsciência global também. E esta América, ainda o principal poluidor do mundo, não age a partir de Washington de forma a mudar o paradigma mundial. Vamos mesmo rebentar com o planeta?.A cada dia que passa, este homem torna-se o maior atentado civilizacional que a história conheceu depois de Hitler. As consequências das suas ações ultrapassam as de Bin Laden do ponto de vista planetário porque estamos num momento decisivo da história da nossa existência natural. E ele não percebe isso - ou percebe mas não consegue compatibilizar o facto com a sua vaidade tóxica..Compreender esta América tornou-se para mim num fascínio diário. Daí o "State of the Union". E valeu a pena. O acontecimento foi filmado com meios que antecipam as caravanas de veículos a deslocarem-se da Casa Branca para o Capitólio, tal como os autocarros das equipas de futebol antes dos dérbis. A CNN é atualmente um canal de desporto político entre azuis e vermelhos. Tem entrevistas de "expectativa" sobre quem vai ganhar, perder, o que sucederá ao shutdown e ao muro. Passam por lá comentadores que já conhecemos de ginjeira, os repórteres que cobrem a Casa Branca, os recém-candidatos democratas e... para tudo - Olivia Ocaso Cortez, a deputada recém-chegada ao Congresso e que toda a gente quer ouvir. (Ainda ontem ela foi um dos rostos do New Green Deal - que os democratas querem tornar a principal bandeira contra Trump nas eleições de 2020.).Congresso. O primeiro grande momento da noite foi a entrada de Melania Trump. Uma estampa. Irreal entre a beleza e a potencial ferocidade, uma personagem de cristal que nos deixa suspensos sobre quando se estilhaçará. Trump dedica-lhe um primeiro comentário-saudação que se torna a primeira ovação da noite: o Congresso de pé a aplaudir a first lady. Ela, que representa quase nada do que são hoje as causas das mulheres. Mas interessa pouco. Estamos a falar de espetáculo puro..Trump arranca no seu estilo absolutamente incisivo, lendo muitíssimo bem no teleponto um discurso que é uma peça histórica enquanto política, manipulação e cegueira..Do ponto de vista substancial, a frase que mais preocupação deve merecer é aquela em que ele afirma ser o presidente da América que mais legislação e regulamentos eliminou. Esta é a questão mais crucial de todas. Há sempre um inimigo na agenda diariamente, variando: China, Coreia do Norte, Irão, México, Canadá, Obamacare - e Putin, claro, embora este a contragosto porque é o único tema que não nasce da sua agenda devido às investigações que não controla..As atenções da agenda Trump estão sempre centradas em grandes questões/cataclismos. Do ponto de vista mediático, Trump orquestra a agenda global como um mágico que atrai as atenções para o "avião" que faz aparecer e desaparecer. Em paralelo, o seu governo elimina embaraços aos grandes negócios da velha economia. É o campeão da desregulamentação ambiental apesar do momento crítico como o que vivemos. Consegue brincar com o global warming porque parece não ter ainda percebido que significativamente ele traduz-se em "extremos de calor ou frio" - alterações climáticas. Cinquenta graus negativos em Chicago são isso. Não entendeu?.Mas além de todas as questões substanciais, preocupa-o o futuro do... muro, "the wall". Depois de mais de um mês de paralisação de parte do governo, despender mais de cinco mil milhões de euros (5,7 mil milhões de dólares) num muro mexicano é a sua grande questão. E depois deste debate é quase certo que Trump vai invocar o "estado de emergência" para começar a obra..Naquele discurso jogou um dos dois momentos mais emocionais da noite: levou até Washington a filha, neta e bisneta de um casal de idosos assassinados no Nevada por um emigrante ilegal e incluiu-as no discurso para uma ovação. Até Nancy Pelosi, a presidente do Congresso, teve de se levantar para aplaudir a família enlutada. Claro, em redor disto o presidente despejou uma série de "factos" e "números" sobre imigração ilegal que a verificação (fact check) do The New York Times se encarregou de desmentir de imediato. Mas, como se sabe, 99% dos espectadores do discurso do Estado da Nação não saberão que estão a ser enganados..Sabemos que Trump aprendeu com os "melhores". Steve Bannon, pai do populismo comunicacional moderno, e Roger Stone, o grande sequestrador da democracia, teriam orgulho neste discurso..(Roger Stone - vale a pena ver o documentário do Netflix Get Me Roger Stone, onde ele explica como ajudou a acabar com a recontagem dos votos na Florida a pedido da equipa de George W. Bush, votos esses que poderiam ter eleito ou não Al Gore. Stone é agora um dos investigados pelas alegadas conexões à Rússia durante a campanha eleitoral de Trump.).Outro grande momento: o presidente que cortou o Obamacare tão transversalmente, levou ao Congresso e sentou junto a Melania a pequena Grace, uma menina de 10 anos com um tumor no cérebro e que teve de fazer crowdfunding para poder ser tratada no hospital da sua cidade. Trump prometeu 500 milhões de dólares em dez anos para a investigação ao cancro. Que dizer de tamanha humanidade? Foi o segundo grande momento da noite, a que se seguiram outras homenagens - desde hispânicos heróis de segurança nacional até sobreviventes do Holocausto. Uma eficácia arrepiante..A política é de facto uma arte cénica, mediática e muitas vezes gratuita porque tudo pode ser altamente profissional para ser profundamente ilusório. E quando assim é, a palavra certa chama-se populismo, sendo este populismo também uma antecâmara da desordem. Porque quando os populistas estiverem desacreditados pelos resultados concretos que produzem, são os sufrágios e as democracias que afundam já que só restarão os homens sérios e sem palavras (muitas vezes isto traduz-se em "militares")..Não é tempo perdido passar-se os olhos pelo vídeo deste extraordinário momento de política que está na página do YouTube da Casa Branca:.Trump é um abismo. Aguentamos mais seis anos disto?