Sociedade
07 agosto 2022 às 22h13

A luta da portuguesa Marita: "Mal tenho dinheiro para comer, mas quando casámos jurei amá-lo"

Krishna Maharaj foi condenado a pena de morte, depois revista para pena perpétua, por dois assassinatos que diz não ter cometido. E até acusa o cartel de Medellín, de Pablo Escobar, de ser o autor dessas mortes. Desde 1986 que Marita, que nunca mais veio a Portugal, luta para que o caso do marido não seja esquecido ao mesmo tempo que tenta a sua libertação.

Carlos Ferro

"Como lido com isto? Não lido, é uma tristeza. Tenho o meu marido preso há 36 anos, primeiro no corredor da morte, agora com pena perpétua, por um crime que não cometeu. E com a covid-19 nem consegui visitá-lo. Tive de me contentar com telefonemas de cinco minutos".

As palavras, amargas, são de Marita Maharaj, a portuguesa que desde 1986 tem mantido nos Estados Unidos uma luta titânica para não deixar cair no esquecimento o processo judicial do marido, Krishna Maharaj.

Nascido em Trinidad e Tobago e com nacionalidade britânica, Krishna cumpre pena perpétua -- a primeira condenação foi à morte, mas depois de vários apelos foi alterada -- pelo assassinato de dois empresários sino-jamaicanos: Derrick Moo Young e o seu filho Duane, em dezembro de 1986.

De acordo com a acusação, Kris (como também é conhecido) marcou uma reunião com Derrick no Dupont Plaza Hotel, em Miami, para conseguir a devolução de dinheiro que lhe deveriam nos negócios em que eram sócios. Em tribunal foi dito que a conversa passou para discussão e que Derrick teria sido morto por Kris, que terá puxado de uma arma e disparado na sua direção por seis vezes. Depois teria executado o filho do empresário.

CitaçãocitacaoKris nunca negou ter estado no hotel, mas sempre afirmou que o tinha feito por causa do encontro marcado com os sócios.

Kris nunca negou ter estado no hotel -- as suas impressões digitais foram encontradas no quarto --, mas sempre afirmou que o tinha feito por causa do encontro marcado com os sócios. Manteve sempre que não tinha matado os sócios e que estava longe na altura dos assassinatos.

No entanto, acabou condenado à pena de morte, apesar de a sua equipa de defesa alegar inconsistência na acusação ao ponto de a organização de direitos humanos Reprieve dizer que o seu caso era "um erro épico da justiça".

O caso assume contornos "cinematográficos" quando, entre as várias alegações que os advogados foram fazendo ao longo dos anos -- e que incluíram pedidos de novo julgamento, de reapreciação do caso e uma carta de três centenas de pessoas ao governador da Florida, em 1997, a pedir um novo julgamento devido às falhas que consideravam existir no processo -- um juiz decide, em 2014, que o advogado de Maharaj podia apresentar testemunhas numa nova audiência.

E é então, a 14 de novembro de 2014, que um ex-agente da agência antidroga dos EUA surge a dizer que o ataque ao empresário e ao filho tinha sido ordenado por Pablo Escobar, o traficante colombiano fundador e líder do Cartel de Medellín e que foi morto pela Polícia Nacional da Colômbia em 1993. E que o autor tinha sido um assassino a soldo do cartel.

CitaçãocitacaoO tribunal reconheceu, a 4 de abril de 2017, que as testemunhas tinham apresentado "relatos convincentes" que poderiam confirmar a hipótese de o cartel estar envolvido na morte de Derrick e Duane Moo Young

Apesar destas declarações, mais ninguém foi detido e Marita há muito que perdeu a esperança de tal acontecer. "Claro que não detiveram mais ninguém. Qualquer um que veja o caso saberá que ele é inocente e percebe quem fez isto, já que seis narcos [membros do gangue] admitiram que o cartel atuou neste caso. Até o infame Pablo Escobar se gabou de ter ordenado os assassinatos", lamenta.

Certo é que perante as novas provas/testemunhos, o tribunal reconheceu, a 4 de abril de 2017, que as testemunhas tinham apresentado "relatos convincentes" que poderiam confirmar a hipótese de o cartel estar envolvido na morte de Derrick e Duane Moo Young e que Maharaj estaria, nessa altura, a 40 quilómetros do local do duplo assassinato.

A verdade é que o máximo que Kris e os advogados -- a organização não governamental Reprieve, representada por Clive Stafford Smith, e que tem estado envolvida em diversos processos, por exemplo, na libertação de presos na Baía de Guantánamo -- conseguiram até agora foi que a pena passasse de "morte" para "perpétua".

Kris Maharaj tem atualmente 83 anos (nasceu a 26 de janeiro de 1939) e está preso desde 1986. Nestes 36 anos Marita tem lutado para não deixar esquecer o processo do homem que conheceu em Londres na década de 1970 do século passado, como contou ao DN em respostas por escrito.

Além de entrevistas que foi dando ao longo dos anos, os seus esforços, com o apoio da Reprieve, contam também com a edição de um livro -- Injustice, Life and Death in the Courtrooms of America - e um documentário Kris Maharaj: Murder in Miami.

Em todas as suas intervenções Marita fala sobre as condições em que vive o marido no centro prisional da Flórida e as respostas enviadas ao DN não são exceção. "Ele vive em tortura. Tem 83 anos e está num dormitório com 40 outros prisioneiros. É um milagre que não tenha morrido com covid pois até para me ligar tinha de estar numa fila com todos os outros homens e usar o mesmo telefone. Mas a verdadeira tortura é ter estado no corredor da morte e agora continuar na prisão por um crime que não cometeu", conta.

Não perde a oportunidade, também, para criticar as decisões judiciais e o facto de não ser concedida a liberdade ao empresário mesmo depois de ter sido reconhecida razão às suas alegações.

"O Kris está a cumprir a pena de morte lenta ou seja passar o resto da vida na prisão. Em 2002, um júri, que não teve autorização para ouvir nada sobre a sua inocência, mudou a sentença de morte para perpétua. Mas isso significa que ele não pode pedir a liberdade condicional até completar 101 anos. Se ele estiver vivo, o que é improvável, pois a esperança de vida na prisão é de cerca de 60 anos", acrescenta Marita Maharaj.

CitaçãocitacaoO Kris está a cumprir a pena de morte lenta ou seja passar o resto da vida na prisão.

Para a mulher do empresário, já ficou demonstrado que este não cometeu nenhum assassinato e que os advogados já "provaram que foi o cartel colombiano que os cometeu. Mas, inacreditavelmente, a lei nos EUA refere que ser inocente não é suficiente para que alguém seja libertado".

Acreditando que a polícia "nunca vai admitir que cometeu um erro, pois não está no seu ADN", Marita não tem grande esperanças que as autoridades deixem o marido "ir para casa em Inglaterra" e, ao mesmo tempo, "peçam desculpam pelo sofrimento que causaram a ele e a mim, tirando-nos 36 anos de vida. É muito improvável que o façam, já que "desculpe" é a palavra mais difícil para qualquer governo".

Marita Maharaj é portuguesa, mas a sua ligação ao país quase desapareceu, pois não sai dos Estados Unidos desde a detenção do marido. "Sou portuguesa e tenho muito orgulho. Mas há 30 anos que não vou à minha terra natal. Mal tenho dinheiro para viver, não consegui dinheiro para pagar a operação às cataratas, quanto mais viajar. E de qualquer forma quero estar aqui com o meu marido. Quando nos casámos, jurei amá-lo e apoiá-lo nos bons e maus momentos e é isso que vou fazer", frisa.

Uma ligação que, garante, vai manter-se até à morte: "Conhecemo-nos na década de 1970 quando eu trabalhava em Londres e fui a uma festa. Foi amor à primeira vista para mim e vai continuar assim até morrermos."

Nas respostas por email ao DN, Marita não esconde que vive com dificuldades, pois a fortuna do marido -- na altura em que se conheceram um empresário de sucesso e irmão de um antigo procurador geral de Trinidad e Tobago, Ramesh Maharaj -- já há muito desapareceu.

"Tenho 82 anos e não posso trabalhar. Sou totalmente dependente dos benfeitores que fazem doações através do advogado de Kris, o Clive [Clive Stafford Smith, da organização não governamental Reprieve]. É a única forma. E recentemente fui despejada da casa pois o proprietário não pagou a hipoteca. Por isso, as coisas estão especialmente difíceis", conta.

CitaçãocitacaoNos últimos 30 anos, dependemos dos advogados pró Bono, que gastaram milhares de horas e dólares para nos ajudar... para nada.

Um panorama que se afigura complicado, pois há muitos anos que não conta com as poupanças: "Kris era um milionário por conta própria e, por isso, já tivemos muita sorte. Mas ele agora está na prisão. Nos primeiros anos, os advogados e os custos legais [do processo] levaram-nos à falência. Nos últimos 30 anos, dependemos dos advogados pró Bono, que gastaram milhares de horas e dólares para nos ajudar... para nada."

cferro@dn.pt