A Comissão Europeia ganhou o hábito de produzir estratégias. É uma boa prática, por permitir fazer avançar a reflexão sobre temas prioritários e chamar a atenção dos diferentes governos sobre a necessidade de coordenação e de ações conjuntas, quando apropriado. Pena é que esses documentos fiquem apenas por Bruxelas e em certos círculos especializados, e não sejam debatidos nos Parlamentos nacionais e pela opinião pública, nos diferentes Estados membros..A Comissão acaba agora de delinear uma outra, a que chamou Estratégia de Segurança da União. Foi desenvolvida sob a batuta do vice-presidente para a Promoção do Modo de Vida Europeu, Margaritis Schinas, que tem na sua salgalhada de incumbências assegurar o nexo entre as dimensões externas e internas da segurança. Ou seja, uma tarefa quase impossível, na medida em que não há harmonia de interesses no que respeita à política externa, nem mesmo no que se relaciona com a vizinha Rússia. Também não há coragem para agir contra os Estados que na realidade representam uma ameaça para a estabilidade interna da Europa, como é o caso da Turquia, entre outros..A nova estratégia de segurança é, acima de tudo, um exercício de enumeração. Faz um apanhado exaustivo das iniciativas em curso, incluindo as respeitantes aos crimes cibernéticos e às campanhas de intoxicação e de deturpação vindas do exterior - sem qualquer referência aos agentes internos que servem de caixa de ressonância dessas mensagens mentirosas. É tudo muito técnico, baseado na intervenção das Polícias e dos organismos de investigação criminal. Falta a ligação à Estratégia Global, aprovada em 2016, e à Política Comum de Segurança e Defesa. É como se a Comissão estivesse apenas a acrescentar mais um silo ao edifício político europeu. Isso é mau. Carece, igualmente, de uma análise das vulnerabilidades de certas categorias de cidadãos, segundo a idade, o sexo, o local de residência, a fragilidade social e económica, a pertença étnica ou cultural. Isso é ainda pior. Quem tenha a paciência para ler o documento fica com a impressão de que no final do período de referência, o ano de 2025, iremos ter uma Europa em que cada passo de cada cidadão será registado e poderá vir a ser objeto de perscrutação. É fácil ficar-se com a imagem de que chegaremos então a uma sociedade fortemente vigiada, com bancos de dados gigantescos a armazenar todos os pormenores das nossas vidas. A estratégia mostra, aliás, que o processo já começou e que será acelerado pelos progressos da digitalização e da inteligência artificial. A prevenção do terrorismo e dos ataques híbridos, que possam pôr em causa as infraestruturas fundamentais, e a luta contra os crimes financeiros serão três das linhas utilizadas para justificar uma vigilância apertada, que parece inspirada no Big Brother imaginado por George Orwell. Mesmo quando se diz que o objetivo último é a defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos europeus, não podemos cair na armadilha da segurança omnisciente, omnipresente e omnipotente. A razão é simples. Um Estado securitário está sempre a um passo de resvalar para um Estado opressivo e manipulador. Exemplos passados mostram que os dirigentes políticos caem facilmente na tentação de desviar as funções da segurança para fins que nada têm que ver com a consolidação do regime democrático e a verdadeira tranquilidade dos cidadãos..Os que não comungam dessa tentação mostram-se tantas vezes incapazes de exercer a fiscalização democrática das instituições de segurança. A maioria das comissões parlamentares de supervisão dos serviços de informação têm mandatos reduzidos, acesso limitado e resultados insatisfatórios. A estratégia agora formulada é omissa quanto às alternativas que deveriam ser consideradas para que poderes independentes, sem conotação partidária, exteriores às disputas parlamentares, possam efetivamente travar possíveis abusos securitários. Ora, a questão do controlo equilibrado dos potenciais excessos de quem observa o nosso quotidiano é essencial. E isso porque as obsessões securitárias são como as bruxas. Há quem nelas não acredite, mas que as há, há! Inclusive nas democracias europeias!.Conselheiro em Segurança Internacional. Ex-representante especial da ONU