Que rei vem a ser isto?
A primeira vez que me debrucei a sério sobre o assunto monarquia europeia foi há 16 anos, quando o DN me enviou, à Maria José Margarido e ao fotógrafo Leonardo Negrão, para fazer a "cobertura" do casamento de Felipe, o herdeiro do trono espanhol, com Letizia, a plebeia jornalista divorciada. No pós-Diana de Gales, as casas reais europeias tinham-se conformado com a ideia de que não fazia mais sentido obrigar os príncipes a casamentos de conveniência - aqueles em que se escolhia um consorte de outra "família real" ou da alta aristocracia para garantir a linhagem - e doravante se devia deixá-los "seguir o coração" (ou outras partes do corpo).
Aquilo que no século XX tinha determinado a abdicação de Eduardo VIII - a deliberação de casar com uma plebeia divorciada - era em 2004, em Espanha, aceite como normal. Mas essa "humanização" e "plebeização" da monarquia, festejadas como um aggiornamento da instituição e neste momento regra na Europa (como se constata nos casamentos dos netos de Isabel II), surgiam na verdade como uma evidência do paradoxo essencial das "monarquias modernas" e "democráticas". Se os reis são pessoas como as outras, que reivindicam o direito a decidir e viver a sua vida privada como lhes apraz, que pode justificar a existência de um privilégio de sangue?
A pergunta, claro, é ela própria paradoxal: nada numa democracia - um sistema baseado no princípio da igualdade e na soberania do povo, expressa através do voto - pode justificar um privilégio de sangue no acesso e manutenção de um cargo de poder público. Razão pela qual a única forma de as monarquias subsistirem em democracia é não serem monarquias. Isso mesmo notava em abril de 2019 um artigo da revista britânica The Economist (Como as monarquias sobrevivem à modernidade): "Se a monarquia não existisse, ninguém a inventaria hoje em dia. A sua legitimidade advém de rituais antigos e contos infantis, não de um sistema baseado na razão e pensado para assegurar um governo eficiente. Transfere o poder por via de um mecanismo que promove defeitos congénitos, não inteligência. É sexista, classista, racista e desenhada especificamente para prevenir que a diversidade, a igualdade e o mérito individual acedam às suas fileiras endogâmicas."
Assim, conclui-se, a única coisa que pode assegurar a manutenção de monarquias em democracia é a ausência de poder: "A maioria dos monarcas que ainda existem não têm qualquer poder, e quanto menos poder tem uma monarquia, menos alguém se interessa por acabar com ela. (...). Qualquer monarca constitucional com noção sabe que a segurança do seu emprego depende de manter a boca calada no que à política diz respeito."
Reduzidos a papéis simbólicos, cerimoniais e de representação, os reis "democráticos" não são na verdade reis, mas uma teatralização da monarquia para efeitos puramente estéticos e afetivos (e quando saem disso, como Felipe VI aquando do referendo catalão, falando à nação como um pai severo, a coisa fica mesmo muito bizarra: de onde crê ele que lhe advém a autoridade para tal?).
Isso mesmo - a importância do afeto - eu e a Zé aferimos na série de reportagens que fizemos naquela semana de 2004 que passámos em Madrid, como de resto resultara já evidente na crise de imagem de Isabel II aquando da morte de Diana: a única legitimação dos soberanos em democracia é o amor do povo. Mesmo republicanos assumidos - e encontrámos muitos mais do que esperávamos - tinham por Juan Carlos estima e até admiração, pelo seu papel no famoso 23-F, o dia em que se opôs a um golpe de Estado de direita. Essa estima, assim como a reserva geral dos media em relação ao monarca, permitiu a Juan Carlos, como hoje se percebe, achar que podia basicamente fazer tudo o que lhe aprouvesse sem ser chamado à pedra.
Tal possibilitou que aquilo que por exemplo no Reino Unido dá origem a escândalo (relações extraconjugais como a de Carlos com Camila Parker-Bowles) fosse em Espanha visto como um assunto estritamente privado. E que essa carta-branca e a noção de vida privada se estendessem a áreas como a da fortuna pessoal. Num mundo no qual tanto se exige, e bem, transparência aos políticos no que respeita à suas finanças, Juan Carlos reinou décadas sem que se soubesse quanto dinheiro possuía, tendo sido um jornal americano - o New York Times - o primeiro a fazer uma estimativa, em 2012, do seu património: orçou-o em mais de 500 milhões em numerário, certificando que em 1975, quando ascendeu ao trono, era praticamente inexistente.
A crer nestas contas do NYT, ficava por explicar como o rei tinha conseguido juntar tanto - mas nem Juan Carlos nem o seu filho Felipe, hoje rei, alguma vez, durante estes oito anos, esclareceram a dimensão da fortuna da família (Felipe renunciou à herança do pai recentemente, é certo; mas durante todo o tempo anterior nunca se interessou por saber quanto herdaria, e de onde vinha o dinheiro? Não se fala de dinheiro nas famílias reais, será?).
Hoje, claro, sabemos que no mesmo ano da investigação do NYT Juan Carlos doou 65 milhões detidos numa conta suíça à empresária Corinna Larsen, suspeitando-se de que essa quantia é parte de 100 milhões em luvas pagos pelo reino da Arábia Saudita em 2008 ao rei - matéria que está em investigação naquele país.
Já em Espanha, como Juan Carlos abdicou apenas em 2014, tudo o que tenha feito anteriormente está fora do alcance da justiça: a inviolabilidade que a Constituição espanhola consagra para os chefes de Estado impede-a de investigar. "O que é dizer", sublinha o jornal espanhol El Diario, "que Espanha não pode averiguar se a origem da sua fortuna está em negócios escuros. Só deve responder por factos ocorridos a partir de 2014, e perante o Supremo Tribunal." Desde logo, factos como o de, de acordo com a autoridade Tributária espanhola, num relatório de 2018, o rei nunca ter declarado contas bancárias no exterior do país - apesar de, pelos vistos, as deter.
Junte-se a todo este imbróglio a saída de Juan Carlos do país e o facto de até agora nem Felipe VI nem o governo terem informado o povo de onde ele está (alguém acredita que não saibam?) e temos uma espécie de demonstração perfeita da obscenidade do privilégio conferido a um homem que fez e faz tudo ao seu alcance para provar que não o merece.
É perfeitamente possível, claro - então, se chegámos aqui - que a monarquia espanhola sobreviva a este espetáculo; que, como vemos por cá, haja quem considere que as regras que se aplicam aos políticos em geral não se devem aplicar aos reis. Estes, pelos vistos, apesar de lhes ser garantida, à custa do erário público, uma vida faustosa em belos palácios, têm desculpa se quiserem juntar mais uns cobres por baixo da mesa. Às tantas está-lhes no sangue, coitados, por via de tanta endogamia. E corrupção é coisa que só fica mal aos pobretanas plebeus; os nobres, por definição, fazem tudo com nobreza, até cuspir na cara do povo. Afinal, o único poder destas monarquias é a impunidade.