"A operação de saída do rei Juan Carlos foi desastrosa"
A saída de Juan Carlos de Espanha era a melhor opção?
Não, penso que foi a pior opção. Ir embora tal como o fez transmitiu uma sensação de fuga, de ser algo vergonhoso. Foi uma operação mal executada, em parte por ele, em parte pela Zarzuela e em parte pelo governo. Não se sabe onde está. Os meios de comunicação falaram primeiro de Portugal e depois de República Dominicana, Abu Dhabi e Arábia Saudita. É lamentável que uma pessoa de 83 anos, inválida, esteja a andar pelo mundo, em segredo, e ninguém até agora tenha dado explicações. Tem de fazê-lo. Saiu do país um senhor que foi chefe do Estado durante 38 anos, não sabemos onde está e o chefe do governo diz, falsamente, que não sabe para onde foi. É tudo muito estranho. Isto não acontece em nenhum outro país do mundo.
Qual era a alternativa, ficar ou sair de outra forma?
Isto devia ter sido uma decisão tomada em consenso com a nação, com informação e transparência. O rei emérito tinha muitas saídas, uma delas passava por regularizar a sua situação fiscal. O que deve fazer de qualquer forma. Também podia ter saído da Zarzuela porque as relações não são boas e procurar instalar-se onde se sentisse bem. Temos de forçar a sua regularização fiscal e enfrentar as consequências que isso pode ter, mas não se trata de o apedrejar. Não faz sentido. Ele representa 40 anos da história de Espanha e fez coisas muito boas pelo país. E já está a pagar um alto preço pelas coisas que fez mal. Mas a operação de saída de Juan Carlos foi desastrosa. Não sei no que está a pensar.
Acredita que está a fugir da justiça?
Quando o procurador chamar, aparecerá. Não penso que esteja a fugir porque está perfeitamente localizável, entre outras coisas porque está com ele uma escolta do Ministério de Interior. Está a colocar distância entre uma situação difícil para o pai e para o filho, e como as relações entre eles não são boas, faz sentido afastar-se. O governo pode ter ajudado, mas não é justo culpá-lo pela má gestão da situação.
Existia muita pressão por parte do governo para que Felipe VI tomasse alguma decisão?
Não falaria de pressões, diria antes que houve comentários. Mas tudo foi tratado sem transparência. Estamos no território das hipóteses. Eu tenho sempre em conta a presunção de inocência, não há um processo judicial aberto, mas o assunto parece bonito. Tudo tem sido mal gerido.
O afastamento de Juan Carlos facilita o trabalho de Felipe VI?
"Matar" o pai não é a solução. Agora são precisos gestos por parte de Felipe VI, que é um grande rei, mas está mal assessorado. A Zarzuela não tem dito nada até agora, estão a preparar a viagem a Maiorca. O governo de férias, as instituições não falam, os ministros não dizem nada, a oposição também não... O país está fechado para férias. Não critico que tirem dias de férias, todos têm direito e tem sido um ano stressante para todos.
No seu último livro, La Ruptura, fala do fim do juancarlismo. Quando começou?
Começou em 2012 com a viagem ao Botswana e acelerou-se com a decadência física do rei. O descrédito e a sua situação física e anímica levou-o a abdicar. Tecnicamente, acabou o juancarlismo, mas é uma época que vivemos e não se pode fazê-la desaparecer. O país não pode renunciar à sua história.
O papel da monarquia está em perigo?
É um momento-chave. Temos uma outra particularidade: ter dentro do mesmo governo duas formas opostas de encarar o Estado. Convivem a consciência da necessidade de defender a monarquia, que é uma maioria, e um outro setor que fala de chegar à república o mais rapidamente possível e mudar o sistema. Num mesmo governo convivem duas teses sobre quase tudo. Não sei o que é que Pedro Sánchez espera para alterar a sua equipa. Sánchez quer convencer-nos de que a coligação com o Unidas Podemos está mais forte do que nunca, mas sabemos que está ainda mais frágil.
Que importância teve o apoio de Pedro Sánchez à monarquia?
Muita. Há algumas vozes que dizem que Sánchez quer ser presidente da III República, e é evidente que não. Ele sabe que, se mudar a base do sistema, o primeiro a sair é ele. E teríamos um governo de direita durante muito tempo. O país iria partir-se em dois. Pedro Sánchez disse uma coisa interessante: que o apoio à Coroa não pode depender só da direita. Ele está a funcionar como um apoio à Coroa, goste ou não, mas é o que está a fazer.
Que repercussões políticas vai ter este assunto?
Aposto que este governo [PSOE-Unidas Podemos], com esta estrutura, não vai chegar ao seu primeiro aniversário. Sánchez precisa de voltar a dormir... E ele disse que com estes parceiros no governo não dormiria... E deveríamos apoiar Sánchez para que possa governar. Porque foi ele quem ganhou as eleições. Disseram-nos que as eleições de 10 de novembro se realizavam para evitar o que 24 horas depois aconteceu: um governo de coligação.
O apoio do presidente do governo à monarquia afasta por agora um possível referendo sobre esta instituição?
Penso que não vamos ter um referendo por agora, mas em algum momento vai ser preciso fazer alguma consulta popular. O que deve ser feito é uma reforma da Constituição. Não vamos ter referendos sobre a independência com perguntas de sim ou não na Catalunha ou se querem a monarquia, sim ou não. Iremos fazer consultas mas sem esse valor definitivo.
A sociedade espanhola rompeu o vínculo com a monarquia?
Algo se rompeu. Desde a viagem ao Botswana, a monarquia perdeu muito apoio dos cidadãos. Felipe VI conseguiu reconquistar alguma dessa confiança, viveu seis anos de agonia. Entre a irmã, o cunhado, o pai, o problema da Catalunha... Está mal assessorado. Há pessoas à sua volta que estão no palácio há muito tempo e pensam que é deles. É um bom rei, está a fazer bem o seu trabalho e deve ser apoiado, quer se seja monárquico ou republicano, o país não está para aventuras.
Como fica a rainha Sofia em todo este assunto?
É a grande esquecida e a grande vítima de tudo isto. Eu compreendo que Felipe VI não goste da forma como tem sido tratada, como qualquer filho, e faz parte das diferenças com o pai. Sofia o que quer é estar tranquila, fazer as suas coisas, e que seja esquecida.
E Letizia, que nunca teve uma boa relação com Juan Carlos?
Penso que é um dos conselheiros de Felipe VI que estão a levá-lo a cometer erros. Ela é muito inteligente, sabe muito de comunicação, mas há qualquer coisa visceral nas relações com o rei Juan Carlos. As relações do rei emérito com as pessoas mais próximas de Felipe VI, a começar pelo chefe da Casa Real, são más. E isso também influencia negativamente.
O que procura Corinna Larsen depois do dinheiro todo que supostamente já recebeu do rei emérito?
Três coisas. Dinheiro, o principal motivo na vida desta aventureira. Vingança, porque sentiu-se maltratada. E defende-se porque é ela quem está a ser investigada. Parece incrível que a um Estado forte e democrático como o espanhol possa magoar tanto esta mulher.
Os sucessivos governos e a comunicação social foram cúmplices de Juan Carlos ao longo destes anos?
Sem dúvida. Fomos todos cúmplices. Nos tempos em que o general Sabino Fernández Campos era chefe da Casa Real contou-nos muitas coisas sobre o que fazia Juan Carlos. Penso que a ideia era nós publicarmos essa informação para dissipar esta sensação de impunidade que tinha o monarca. Mas não o fizemos porque não era fácil e porque pensámos que protegíamos melhor o Estado. E finalmente as incongruências pagam-se com um preço muito alto.
Como é que a história de Juan Carlos chegou até este ponto?
A sensação de impunidade. Tal como acontece a alguns políticos quando têm muito poder. Juan Carlos tinha a Constituição do seu lado porque o artigo 56 declara-o inviolável. É um erro que deve ser mudado. E acredito plenamente que Felipe VI, inflexível na defesa dos seus princípios, o fará. No fim, penso que a história lhe vai guardar um lugar entre os bons e não entre os maus.
Como é que a rutura da qual fala no seu livro está a acontecer em Espanha?
É uma rutura em todos os sentidos. Nos últimos seis meses, quebrou-se tudo, tivemos um governo de coligação inédito, acabou-se o bipartidarismo, o espírito de 78, o consenso constitucional... Rompeu-se a máxima instituição do Estado, a rutura entre pai e filho é enorme. E depois rompeu-se a nossa vida quotidiana, com a pandemia. Nada vai ser igual.