Subvenções vitalícias: não chega já de demagogia?

Chamar ladrões e chupistas - ou seja inimigos do povo - aos políticos é como se sabe a receita da extrema-direita populista. E por vezes também a da esquerda, como se vê no caso das subvenções.

"Há mais de 300 ex-políticos com direito a uma pensão vitalícia por... terem sido políticos. Dinheiro dos contribuintes que o X já propôs parar de oferecer à custa de quem trabalha. Como vamos acabar com elas?"

Se me pedissem para adivinhar quem seria o X nesta frase, não hesitaria: um populista, provavelmente de extrema-direita. Está ali tudo: "dinheiro dos contribuintes", "à custa de quem trabalha", "pensões vitalícias por terem sido políticos". Não há que enganar no desenho: políticos como chupistas inúteis em oposição a quem trabalha - exceto no caso do político que assina estas coisas, claro, que esse sim está do lado do povo contra os seus inimigos, e só quer ser eleito para combater aquela má raça, os políticos, da qual ele, apesar de político, evidentemente não faz parte.

Este tipo de paradoxo não costuma incomodar os populistas: apostam naquilo que consideram ser o basismo do "povo", a sua falta de informação e sofisticação e os seus (maus) sentimentos. E muitas vezes ganham a aposta: até já vimos um multimilionário que recusa divulgar as suas declarações de impostos e tem uma história de vida plena de aldrabices, exploração dos desvalidos e demonstrações de desprezo por toda a gente que não ele próprio ganhar as eleições com conversa "contra o sistema".

Quer-se que quem ocupa um cargo político abandone qualquer atividade profissional e quando saia do cargo observe uma série de interditos, mas não se lhes oferece nada em troca. Qual é a ideia, que todos são funcionários de partido, como no PCP, ou que a política deve ser ocupação só de ricaços? Ou é suposto cometerem seppuku?

Há uma palavra muito velha para isto - demagogia. Usemos uma definição simples de dicionário: "Discurso ou ação que visa manipular as paixões e os sentimentos do eleitorado para conquista fácil de poder político." Exatamente o que vemos na simplificação canhestra e/ou desonesta que tem imperado no caso das subvenções vitalícias e demais compensações por mandatos políticos, agora levada ao expoente pela proximidade das legislativas.

E não, o X na citação não é de um qualquer partido ou movimento de extrema-direita. É do Bloco de Esquerda, que esta semana publicou um tuite com aquele texto a acompanhar um vídeo. Esse vídeo é um excelente exemplo de tudo o que está errado nesta discussão, que nem discussão chega a ser, sobre as subvenções vitalícias.

Desde a escolha de imagens de recipientes das subvenções - só políticos do PS e PSD (à exceção de Zita Seabra, que foi PCP mas até há pouco tempo associada ao PSD), para dar a ideia de que as subvenções são um vício exclusivo do centrão e que ambos os partidos são "farinha do mesmo saco" - à alegação de que PS e PSD quiseram "repor" as subvenções em 2014, trata-se de uma manipulação grosseira que chega à desonestidade.

Recorde-se que as normas, de 1985, que permitiam a existência destas subvenções para deputados, governantes e juízes do TC que perfizessem 12 anos (seguidos ou interpolados) de mandato e primeiros-ministros e presidentes do parlamento que desempenhassem as funções durante quatro anos foram revogadas pelo governo PS de maioria absoluta, em 2005.

Essa revogação manteve porém os chamados "direitos adquiridos": quem já as recebia ou na legislatura 2005/2009 perfazia o tempo necessário para as requerer não perdia o direito, mas passava a haver limitações na acumulação com vencimentos de cargos públicos. Em 2012, o governo Passos impôs mais limitações, na acumulação com vencimentos do privado. Na lista dos 318 recipientes das subvenções há vários com estas cortadas total ou parcialmente por esse motivo.

Já o episódio de 2014 mencionado pelo BE disse respeito à proposta de deputados do PS e PSD de acabar com cortes decretados pelo Orçamento de Estado desse ano, o qual impusera uma condição de recursos para A subvenção (quem tivesse rendimentos mensais de 2000 euros ou mais perdia o direito a ela). A proposta não chegaria a avançar devido ao clamor público mas em 2016 o Tribunal Constitucional determinaria que aqueles cortes eram inconstitucionais, e as subvenções em falta foram pagas. Naturalmente, não há no vídeo do BE qualquer menção à decisão do TC - baralhava a demagogia. Também não aparece a informação de que todos os partidos, do CDS aos Verdes, passando pelo PCP, têm gente na famosa lista; os eleitos do BE, que só chegaram ao parlamento em 1999, nunca tiveram sequer a hipótese de se confrontar com a decisão, ou tentação, de pedir ou não a subvenção.

Entendamo-nos: pode-se, claro, estar contra as subvenções ou qualquer outro tipo de compensação por desempenho de cargos públicos, ou discordar (eu discordo) da fórmula específica de subvenção que vigorou em Portugal. Mas debater o assunto com seriedade implica perguntarmo-nos se é descabido que quem se dedica, por um período alargado de tempo, à causa pública e à atividade política possa ter alguma compensação quando abandona os cargos ou "ajuda" na reintegração profissional.

Dos EUA à França, do Reino Unido à Suécia, as democracias ocidentais previram mecanismos de compensação e/ou reintegração para quem acaba mandatos políticos - talvez porque em democracia é normal as pessoas não ficarem lá para sempre.

A resposta é capaz de não ser tão fácil como parece. É que se há tanta gente com ideias irredutíveis sobre o inaceitável que é deputados, membros dos governos nacionais e regionais e até primeiros-ministros poderem beneficiar desse tipo de benefício, não me lembro de alguém propor acabar com as subvenções vitalícias dos PR, criadas em 1984. Porquê, se se trata também de um cargo político? Se aceitamos (e bem, na minha opinião) que um presidente depois de sair de funções deve continuar a ter um salário alto e uma série de "mordomias", não sendo obrigado a procurar trabalho - se tiver idade para isso -, que há de tão escandaloso na possibilidade de existir algum tipo de apoio para a reintegração na "vida normal" de quem desempenhou outro tipo de cargos políticos?

Para mais, os que clamam contra tal possibilidade são os primeiros a exigir exclusividades estritas aos políticos em funções e, no caso dos governantes, períodos de nojo cada vez mais extensos. Ou seja, quer-se que quem ocupa um cargo político abandone qualquer atividade profissional e quando saia do cargo observe uma série de interditos, mas não se lhes oferece nada em troca. Qual é a ideia, que todos são funcionários de partido, como no PCP, ou que a política deve ser ocupação só de ricaços? Ou é suposto cometerem seppuku?

Acresce que Portugal, ao acabar de uma vez, em 2005, com as subvenções e o subsídio de reintegração (uma espécie de indemnização que os deputados podiam pedir quando regressavam à "vida civil", como foi o caso de Passos Coelho em 1999, quando saiu do parlamento, e de cujos beneficiados não há lista disponível para consulta), parece ter-se colocado numa situação peculiar em termos internacionais. Dos EUA à França, do Reino Unido à Suécia, as democracias ocidentais previram mecanismos de compensação e/ou reintegração para quem acaba mandatos políticos - talvez porque em democracia é normal as pessoas não ficarem lá para sempre.

Na Suécia, tantas vezes apontada como um exemplo de frugalidade nestas matérias, basta estar um ano no parlamento para se poder ter direito a um apoio no regresso à vida "lá fora". Nos EUA, os membros do Congresso são elegíveis para pensão completa ao fim de cinco anos; no Reino Unido os deputados podem receber um subsídio de reintegração que corresponde a um mês de salário por ano de serviço, com um limite de seis, ou seja, quase 40 mil euros, além de um estipêndio de cerca de 60 mil para liquidar ordenados de pessoal e outras despesas.

Podemos, claro, achar que fomos pioneiros e que nós é que estamos corretos. Ou repensar o assunto e concluir que se queremos políticos de qualidade se calhar faz sentido discutir estas coisas de forma menos primária e oportunista.

O PCP advoga a extinção total das subvenções, mas enquanto não são extintas "a orientação" é para os seus eleitos as quererem. Jerónimo fê-lo em 1993, aos 46 anos. Mas o PCP garante que não é para "benefício próprio", entrega ao partido. Assim já não faz mal.

E menos sonsa, já agora. É que não há melhor ilustração da forma pouco séria como esta questão tem sido tratada que a atitude do PCP, o qual tem Carlos Carvalhas, Odete Santos, Domingos Abrantes e Jerónimo de Sousa (desde 1993, quando tinha 46 anos) na lista dos recipientes mas nunca o assumiu enquanto clamava pelo fim das subvenções.

Quando o facto foi enfim revelado, em 2016, fez um comunicado no qual explicava que "mantendo-se a existência das subvenções" a orientação do partido é de que "os eleitos do PCP não prescindam desse direito, não dando a outros a gestão dessa verba" - verba que vem da Caixa Geral de Aposentações, sublinhe-se, não está posta de lado para este efeito, ao contrário do que assim se dá a entender - "e requerendo-a não é usada em benefício próprio, é entregue ao PCP e posta ao serviço da defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores e do povo." É dinheiro do povo que não devia ir para os políticos; mas como vai para o partido está tudo bem, porque este partido, ao contrário dos outros, é do povo; às tantas os políticos do PCP nem são bem políticos. Malandros são os outros, claro.

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