Conselho amigo e antigo, vindo de um livro de Alexandre Dumas: cherchez la femme. Há uma de que poucos falam, mas de quem Richard Nixon chegou a dizer que sem ela não teria havido Watergate. Martha Elizabeth Beall Mitchell era uma candidata mais do que improvável a lançar um escândalo de tais proporções, e é certamente exagerada - e, como sempre, raivosa - aquela afirmação de Nixon. Ainda assim, Martha teve o seu papel na denúncia do caso histórico, e pagou cara a ousadia. O surpreendente é que nada faria prever que ela se portasse como portou, o que mostra bem que as pessoas nem sempre são o que parecem, e que aquela sua imagem de socialite loira e frívola escondia uma mulher de grande densidade e não menor coragem. Martha nasceu em Pine Bluff, no Arkansas, em Setembro de 1918, e teve um percurso previsível e sem sobressaltos: filha de um negociante de algodão e de uma professora, estudou nas universidades do Arkansas e de Miami, formou-se em História, foi professora no Alabama. Após a Segunda Guerra, seria transferida para Washington, capital do império. Casou, teve um filho, divorciou-se em Agosto de 1957 e, poucos meses depois, em Dezembro desse mesmo ano, voltou a casar, para mal dos seus pecados. O marido, John N. Mitchell, era um advogado e político republicano que, não muito depois, se tornaria um dos mais próximos amigos, confidentes e apoiantes de Richard Nixon, seu sócio de escritório em Nova Iorque. Em 1968, Nixon fê-lo director da sua campanha presidencial e, logo que tomou posse, em Janeiro do ano seguinte, pagou-lhe os leais serviços nomeando-o procurador-geral dos Estados Unidos da América. Defensor de uma política implacável de combate à criminalidade e à delinquência, Mitchell fez coisas do piorio: defendeu o uso de escutas telefónicas sem autorização judicial, sustentou que a polícia tinha o direito de prender preventivamente os meros suspeitos de crimes, instaurou vários processos aos críticos da guerra do Vietname. E, claro, mostrou-se avesso a que o Departamento de Justiça continuasse a envolver-se na causa dos direitos civis, ao mesmo tempo que procurou abrandar o processo de integração racial nas escolas do sul da América. Um desastre completo, e com sequelas: na campanha presidencial de 1971-72, Mitchell tentou, sem sucesso, lançar um golpe baixo contra o candidato democrata George Wallace, indo ao ponto de, para esse efeito, financiar uma facção mais endiabrada do Partido Nazi Americano....Sempre a seu lado, Martha ganhou enorme destaque na imprensa americana pelas suas tiradas desbocadas e estridentes, que quadravam bem com uma aparência de "tia" cinquentona e loira, impecavelmente vestida, penteada e maquilhada, com óculos de sol extravagantes, ao gosto daquela extravagante época. Anticomunista ferrenha, acérrima defensora dos valores tradicionais, ficou conhecida como "Martha the Mouth" ou "The Mouth of the South", a voz do reaccionarismo puro e duro, que ademais vivia ofuscada pelo glamour de Washington e dos corredores do poder. Ávida de sensações mundanas, habituara-se a escutar as conversas do marido e conhecia a fundo as intrigas palacianas urdidas na Casa Branca, que relatava pouco ou nada discretamente a alguns repórteres de confiança - estes reciprocavam, garantindo-lhe presença assídua nas colunas sociais e de mexericos. Durante anos, não hesitou em telefonar diariamente a jornalistas ou em aparecer em talk shows para troçar dos pacifistas adversos à guerra do Vietname e até, pasme-se, dos juízes do Supremo Tribunal de quem não gostava. Chegou a ter uma rubrica num programa televisivo meio apatetado, em que gozava desbragadamente com a imprensa liberal, especialmente com o The New York Times e com o Washington Post. A dada altura, segundo parece, Nixon terá perdido a paciência e confidenciou ao seu chefe de gabinete: "Precisamos de desligar a Martha de vez." Falta lembrar, todavia, que fora Nixon quem a incentivara a fazer propaganda dos Republicanos e que fora a Casa Branca que a levara a um programa televisivo de 1969 em que Martha proclamou que os manifestantes contra a guerra do Vietname eram "revolucionários comunistas liberais", sendo muito apreciadas outras observações cáusticas da Sra. Mitchell, designadamente quando disse que o senador Fulbright deveria "ser crucificado" pelas suas atitudes pacifistas e que o Supremo Tribunal deveria ser extinto para sempre, nem mais, nem menos..Na Primavera de 1972, John Mitchell renunciou ao cargo de procurador-geral para dirigir, uma vez mais, a campanha eleitoral de Richard Nixon. Pouco depois, na madrugada de 17 de Junho desse ano, cinco homens foram detidos no interior da sede do comité nacional do Partido Democrata em Washington, no edifício Watergate, o prédio onde, por espantosa coincidência, habitava também o casal Mitchell. Às nove da manhã desse sábado, Bob Woodward, um jovem repórter de 29 anos que entrara poucos meses antes para a redacção do Washington Post, recebeu uma chamada em sua casa, pedindo-lhe para ir ao jornal fazer a cobertura do estranho assalto à sede dos Democratas. Woodward reparou que um colega já estava a trabalhar no caso. Chamava-se Carl Bernstein, tinha 28 anos, entrara para o Post em 1966, e aí fazia reportagens variadas sobre o que ia acontecendo na capital: concertos de rock e de música clássica, reuniões camarárias, audiências de tribunais, casos vulgares de polícia. A dupla Woodward-Bernstein esteve no epicentro do escândalo e, não muito depois, recordou as suas reportagens históricas num livro que deu filme, Os Homens do Presidente, traduzido entre nós com o título Watergate. O Processo de Uma Presidência (Bertrand, 1974)..Entre os assaltantes do Watergate encontrava-se James McCord, um homem que, perante o juiz, se identificou como agente da CIA. John Mitchell, director de campanha de Nixon e seu fidelíssimo amigo, estava metido no caso até aos cabelos e temia que, se a mulher soubesse que James McCord fora preso, iria perceber tudo - e, pior do que isso, iria contar tudo, tudinho, ao primeiro jornalista que lhe aparecesse à frente. McCord, chefe de segurança do comité para a reeleição de Nixon, homem próximo do antigo procurador-geral, tinha sido guarda-costas da filha do casal Mitchell e, segundo dizem, manteve com ela uma relação muito próxima, de grande intimidade. Ao saber da detenção de McCord, Martha virou fera, e aí começou a sua tragédia. Regressado à capital, tendo deixado a mulher na Califórnia, John Mitchell ordenou aos seguranças que a vigiassem de perto e, acima de tudo, que lhe controlassem as chamadas telefónicas, impedindo-a de falar com jornalistas. A irrequieta Martha, contudo, conseguiu ligar para Helen Thomas, jornalista da UPI. Disse-lhe que estava farta de tudo, que fizera um ultimato ao marido - ou Nixon, ou ela -, que estava sequestrada há dias num quarto de hotel, vigiada por guarda-costas, que um médico a injectava regularmente com sedativos. "Sou uma prisioneira política", foram as suas últimas palavras, antes de a chamada ser interrompida bruscamente. Segundo dirá mais tarde, fora um antigo agente do FBI, Steven King, que, ao vê-la a falar com estranhos, puxou com violência o fio do telefone, fazendo cessar a ligação de modo abrupto, e à bruta. Depois, começou a campanha de descrédito, beneficiando do machismo reinante, com os assessores do Presidente a ventilarem à imprensa que a Sra. Mitchell era uma mulher psicologicamente perturbada e com problemas alcoólicos (o que, em parte, era verdade), que era uma ignorante e uma exibicionista, sequiosa de atenção e mimos da imprensa. Percebendo que Martha era a testemunha-chave do caso, Bob Woodward deslocou-se a Nova Iorque para falar com ela. Já se conheciam de uma reportagem feita em 1971, e agora o repórter do Post achava que Martha se tornara o "coro grego do drama do Watergate - lançando as suas diatribes a todos os que a quisessem ouvir", como dirá em Os Homens do Presidente..Depois de algumas peripécias, Woodward conseguiu iludir os seguranças e subir ao apartamento dos Mitchell, onde o aguardava uma Martha de blusa estampada, calças azuis e sandálias brancas, que o recebeu de uma forma desarmante, mas típica: "Estou tão confusa por me apanhar com creme na cara!" A conversa de 15 minutos, entrecortada pelo ruído de um aspirador doméstico, pouco adiantou, e Woodward limitou-se a escrever uma breve nota na secção "Style" do jornal, considerando que a viagem a Nova Iorque fora um desperdício de tempo. Ou não. Mesmo não tendo dito grande coisa a Bob Woodward, Martha Mitchell foi uma peça essencial no escândalo Watergate, a brecha feminina na cidadela de mentiras montada pelos "homens do Presidente". Desde logo, porque a captura de McCord permitiu estabelecer uma ligação directa entre um dos assaltantes da sede dos Democratas e o director da campanha de Nixon. Depois, porque Martha sublinhou aos jornalistas a importância dessa conexão. Além do mais, ao ter falado com Woodward, o repórter que andava a virar a América do avesso por causa do Watergate, e que publicou uma notícia dessa conversa em Nova Iorque, Martha semeou o pânico entre a camarilha de Nixon, começando pelo seu marido, o que os levou a agir de forma atabalhoada e a cometer deslizes grosseiros. Por último, mas não menos importante, o facto de Martha se ter afastado do marido, e de o ter denunciado, foi um golpe letal na credibilidade da Casa Branca e na sua encenação de opereta. Martha poderia ter-se calado, mantendo-se como esposa fiel de um homem poderoso, mas tomou outra opção, mais arriscada e penosa, mais corajosa. Não por acaso, e como atrás se disse, na histórica entrevista que concedeu em 1977 ao jornalista da BBC David Frost - e onde pediu desculpas aos americanos pelo seu comportamento impróprio -, Richard Nixon afirmou, preto no branco, que "se não tivesse sido por causa de Martha Mitchell, não teria havido Watergate"..Os Mitchell separaram-se em 1973, pouco depois do escândalo, e Nixon renunciou à Presidência em Agosto do ano seguinte. Diagnosticada com um mieloma múltiplo, Martha Mitchell foi internada num hospital de Nova Iorque, onde morreu em Maio de 1976, abandonada e praticamente na miséria. Tinha 57 anos e, nos últimos instantes de vida, não teve nenhum familiar ou amigo por perto (o porta-voz do hospital disse à imprensa que tinham contactado o ex-marido, mas este não quis aparecer). Por uma singular coincidência, a actriz Madeleine Kahn, que fez de Martha Mitchell no filme Nixon, de Oliver Stone, também morreria de cancro, e exactamente aos 57 anos. A casa natal de Martha em Pine Bluffs está hoje classificada e registada na lista dos lugares históricos dos Estados Unidos e o seu nome foi dado a uma auto-estrada do Arkansas, tendo sido feitas duas peças de teatro, pelo menos, com a sua história. O testemunho de James McCord confirmou essa história, segundo a qual teria havido uma trama para silenciar Martha, a mando do próprio marido e de Richard Nixon. "Foi como uma novela de James Bond. Não pode sequer acreditar, na altura nem eu própria era capaz de acreditar", disse ela a David Frost. Questionada por Frost sobre o seu ex-marido e sobre o Presidente, respondeu que o primeiro era para si um homem morto; do segundo, não quis falar..Em 1975, John N. Mitchell foi considerado culpado dos crimes de conspiração, obstrução à justiça e perjúrio, e condenado a oito anos de prisão, dos quais cumpriria apenas 19 meses numa cadeia de segurança mínima, de onde foi libertado por razões de saúde. As gravações da Casa Branca, efectuadas secretamente por Nixon, mostraram que John Mitchell não só participou no plano de assalto à sede dos Democratas como depois se reuniu três vezes com o Presidente, pelo menos, para definirem uma estratégia de encobrimento do crime. Mitchell morreu de ataque cardíaco fulminante numa rua de Georgetown, em Novembro de 1988. Nesse mesmo ano, numa publicação médica, o psiquiatra Brendan Maher escreveu um artigo científico sobre o "efeito Martha Mitchell", que doravante passou a designar, na literatura da especialidade, situações em que um psiquiatra ou um psicólogo, ou outro profissional de saúde, qualificam como ilusórios certos sintomas relatados por um paciente e, como tal, erram no diagnóstico e pecam no tratamento. Entre os exemplos de situações reais que podem ser consideradas fruto de fantasia delirante encontram-se a perseguição por organizações criminosas, a vigilância por autoridades policiais, a infidelidade conjugal ou certos sintomas físicos. Em vários casos em que essas situações ocorrem, em que alguém tem mafiosos no encalço ou polícias a vigiá-lo, os médicos tendem a julgar que tudo não passa da imaginação do paciente e pouco ou nada fazem. Também Martha Mitchell disse que era perseguida e controlada pelos seguranças do marido, que um médico lhe injectara sedativos, que um antigo agente do FBI lhe arrancara a linha do telefone, e muitos julgaram que estava louca e era alcoólica, ou que tudo não passava de uma - mais uma - das tiradas desbocadas da "Mouth of the South"..Por vezes, como no "efeito Martha Mitchell", a realidade é tão estranha que até parece ilusão. Em 2017, Donald J. Trump nomeou um novo representante diplomático na República Checa. Chama-se Stephen B. King e é um antigo agente do FBI. E sim, foi ele, exactamente ele, o homem que arrancou o telefone das mãos de Martha Mitchell. Hoje é o embaixador dos Estados Unidos em Praga. E esta?Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia