Especialista diz que número de infeções no país não é real e "isso é preocupante"
A 30 de setembro, o governo português decidiu não renovar o estado de alerta em que o país se encontrava desde há meses e que ainda impunha algumas medidas de restrição e de mitigação da transmissão da covid-19, nomeadamente a obrigatoriedade de realização de testes de rastreio que comprovavam depois o isolamento a que os infetados tinham direito durante cinco dias. Mas há já especialistas a alertarem para o facto de o número de notificações da infeção que está a ser registado não ser real.
"As infeções continuam a ocorrer. Só que deixámos de ter vigilância através da obrigatoriedade dos testes de rastreio, o que cria dificuldades em sabermos qual é a situação real e até de fazer projeções", argumenta o professor Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que desde o início da pandemia integra a equipa que faz a modelação da doença.
O analista considera que o fim do estado de alerta pode ter sido "uma precipitação, ou não foi bem pensado", sobretudo porque a decisão surge "num período em que as doenças respiratórias começam a crescer e a aumentar",argumentando: "Se esta decisão tivesse sido assumida em julho ainda se entendia, pois sabemos que o impacto da infeção nesta altura é menor. Agora, é uma preocupação."
Aliás, ressalva ainda, "basta olhar para o que se passa na Europa Central para ficarmos preocupados. Estamos a fazer o contrário de outros países". E alerta: "Na Europa está a observar-se o ressurgimento de uma nova vaga, de uma nova onda epidémica. Alemanha, Áustria, França, Itália e Bélgica, mas principalmente as duas primeiras, estão a registar um aumento de infeções de forma exponencial, e estão todos a assumir medidas de restrição, porque estamos a entrar no período outono-inverno. Em Inglaterra, o aumento de infeções já está a ter impacto no número de internamentos".
Por cá, o cenário é diferente. "O número de infeções caiu abruptamente da semana passada para esta, com uma redução da ordem dos 70%, o que não é normal", reforçando: "Do ponto de vista da vigilância epidemiológica cria uma situação que só nos permite ter noção da situação real de forma indireta. Ou seja, através de alterações nos internamentos e nos óbitos, o que só começaremos a sentir quando a transmissão aumentar entre os maiores de 65 anos e de 80".
Nesta altura, segundo os dados divulgados pela Direção-Geral da Saúde (DGS), o país registou, na segunda-feira, 1313 infeções, na terça-feira 1144 e na quarta-feira 490, enquanto na semana anterior, nos mesmos dias, eram registados 4353 infeções, 3215 e 2665, respetivamente. Ora, "não é normal que numa semana tenhamos mais de quatro mil e três mil infeções e na seguinte tenhamos mil", diz Carlos Antunes.
"Isto representa quedas da ordem dos 70% e 80%. E o vírus não desapareceu nem deixou de infetar pessoas. Portanto, esta queda abrupta é artificial e só explicável pela alteração do quadro de vigilância epidemiológica. Como disse, devido à retirada da realização dos testes que comprovavam o isolamento". É tão simples, quanto isto: "Os testes eram prescritos pela Saúde 24 ou feitos nas farmácias gratuitamente. A maior parte dos casos era apanhada no rastreio de contactos de infetados e isso acabou".
O que se passa com a notificação das infeções atinge a realidade do R(t), índice de transmissibilidade. Como explica o professor da equipa da Faculdade de Ciências, "na semana passada tínhamos um R(t) de 1.06. Esta semana já está abaixo de 1.0. Esta evolução também é artificial". Até porque, refere o professor, na semana passada, já se estava a observar no nosso país o impacto do início das aulas.
"As infeções nos jovens dos 10 aos 19 anos estavam a ter um aumento significativo, tendo duplicado em pouco mais de uma semana, e a mesma tendência já era seguida nos escalões dos mais jovens, dos 6 aos 10 anos, e depois dos 19 aos 25 anos". Por isso, questiona: "Se estes grupos, entre os 6 e os 25 anos, estavam em ascensão no número de infeções como é que de repente deixaram de estar, havendo até uma quebra? Isto quer dizer que este ciclo foi interrompido pela alteração do quadro de vigilância epidemiológica e os números que temos agora são artificiais, não correspondendo à realidade". O último relatório da situação epidemiológica divulgado ontem pelo Instituto Ricardo Jorge indica um R(t) de 0.98 e uma média diária de 2644 infeções.
Para o analista da Faculdade de Ciências é certo que a cobertura vacinal no nosso país é elevada, mais do que em qualquer outro país em que os casos estão a aumentar, mas a verdade é que com o quadro atual de vigilância "não se sabe ao certo qual é a incidência da doença e nem se consegue avaliar como está a ser a sua progressão". Por outro lado, esta situação cria outra dificuldade: "É que havendo menos testes também há menos possibilidade de recolher amostras de sequenciação para se saber qual as variantes que estão a circular".
A equipa de ciências tem avaliado as reinfeções e há fortes probabilidades de que pessoas infetadas há três meses, em junho, com a BA.5 tenham sido novamente reinfetadas em setembro. "A nossa avaliação indica haver 103 casos que foram infetados em junho e depois em setembro. Isto até à data de 24 de setembro, o que quer dizer que o vírus está a aumentar a sua capacidade de reinfetar, mesmo pessoas que tenham adquirido imunidade (pela doença ou com vacina). Sabemos que a vacina protege contra a doença grave e que controla os óbitos, mas há sempre uma taxa de letalidade e de hospitalização; e se o número de infeções aumentar nas pessoas mais vulneráveis, acima dos 65 anos, naturalmente que também vamos ter um aumento de internamentos e de óbitos".
O professor relembra que estamos a entrar no período de outono-inverno, e que ainda não foi declarado o fim da pandemia - embora, do ponto de vista da infeção se possa dizer que está quase endémica - e não sabemos o que aí vem. "Olhando para o que se está a passar na Europa ficamos preocupados, pois de um momento para o outro poderemos perceber que toda a gente está a ficar infetada", sublinha. E é isto que é preciso evitar, nem que tenha de voltar o estado de alerta.