António Costa de mãos desatadas
Em dia eleitoral, o noticiário sobre a abstenção é pouco relevante. O dia é para contar os que se apresentaram, não com os que se ausentaram (Marcelo avisou, e bem). É verdade que, sendo muita ou escassa, a abstenção tem justificadas razões para ser citada por sociólogos, politólogos e moralistas sociais em geral: a saúde de uma democracia mede-se também por ela. Mas os números da abstenção têm sempre muito eco ao longo de um dia eleitoral porque, entretanto, não há outros números. Logo que esses outros aparecem, esquece-se a abstenção. É um mau hábito falar-se tanto de abstenção em dia destes. Tal como é péssimo fazer-se tão pouco sobre o assunto ao longo dos outros dias.
Como de costume, a emoção do dia eleitoral começou com as projeções à boca das urnas, feitas pelos canais televisivos, e conhecidas por políticos e jornalistas antes das 20.00, hora em que já é permitida a sua divulgação pública. E, a essa hora, foi anunciado: o PS à beira da maioria absoluta. A SIC, a mais otimista para os socialistas, adiantou até um intervalo de 105 a 117 deputados eleitos (o último número já dentro da maioria absoluta, o que não iria acontecer).
A diretora de campanha do PS, Ana Catarina Mendes, apressou-se a falar da "grande vitória do PS". Mas, na verdade, àquela hora, os números ainda não revelavam o essencial que havia para concluir do voto dos portugueses. O "à beira" calculado por uma projeção não respondia se o PS tinha maioria absoluta ou não. Ora, desde aquela equívoca noite da última eleição legislativa, em 2015, que levou os portugueses a não entender durante dias quem ganhara ou não, passámos a ser mais exigentes sobre o que o que diziam realmente as urnas.
Há quatro anos, supunham ainda os imprevidentes que ganhava quem chegava em primeiro lugar e, em primeiro, de facto, tinha chegado o PSD-CDS. Ora, a eleição era para governar, coisa que se faz no Parlamento com maiorias. Então, em 2015, alguém deu-se ao trabalho de somar o óbvio, os números do PS, do PCP e do BE, e ensinou-nos com essa soma simples que se impôs às interpretações teóricas, o seguinte: com ela, qualquer que fosse a forma que a soma adotasse, com mais de 115 deputados a apoiar, governa-se! Essa é que é essa. Enfim, a direita ganhou uma popular boutade ao inventar a palavra geringonça, mas perdeu o fio da conversa política durante quatro anos. Ontem, ela recebeu a fatura.
Agora, felizmente, já sabemos que é necessário saber ouvir o que uma eleição legislativa acabou de dizer: com estes números, quem nos pode governar? E ontem, depois das projeções, ficou logo a saber-se que, com maioria absoluta ou não, o PS ia governar. E apesar de logo se ter sabido que a maioria absoluta socialista não acontecera, o seu número de deputados, que aumentara muito, ia permitir combinações mais variadas do que a geringonça... "Grande vitória do PS", a frase cedo dita por Ana Catarina Mendes foi mesmo exata.
António Costa passou a poder formar governo sozinho, com alianças pontuais ou com variados parceiros - e de leque vasto. Pode também insistir na geringonça. Na sua declaração de vitória referiu-se a ela, com todas as letras, como os que ultrapassaram alcunhas dadas para ofender e as adotaram. Único partido (com exceção do PAN) a subir no número de mandatos, mais de 20 deputados, o PS pôde ser generoso com os anteriores aliados e Costa propôs repetir a experiência. Impôs uma condição de bom senso, prosseguir a "estabilidade", e deu um conselho prudente: dar atenção à boa impressão que se criara no mundo sobre Portugal...
O BE, que passou por ser um dos raros vencedores da noite (apesar de só ter mantido os deputados, 19), já antes, pela voz da líder Catarina Martins, propusera múltiplas configurações de aliança: combinações ano a ano ou de mandato completo... A resposta de António Costa a isso parecia dizer quanto ele confiava que o BE, apesar de algumas raras inquietações esquerdistas que manifesta, já fez uma definitiva incorporação no regime democrático. Porém, do PC, que vai entrar numa programada mudança de liderança, é de esperar que a sua pesada derrota o leve a mostrar reticências, perante a sua base, por uma experiência que lhe custou cinco deputados.
Mas a verdade é que, do BE e do PC, o PS só vai precisar de abstenções no Orçamento. Uma votação de tão pouco, que não impõe comprometimentos maiores, também não obriga a grandes contrapartidas... Um António Costa de "mãos atadas" perante os comunistas e o BE, como a direita o pintara, passou a ser mais inverosímil. Como bónus (ou talvez não, pela incerteza que ainda é), o aumento dos mandatos do PAN; e, sem qualquer dúvida, a entrada do Livre no Parlamento dá um aliado sólido a Costa.
Acrescentando a isso a disponibilidade dada por Rui Rio, ontem, para discutir e negociar com o novo Governo, a política de (quase) todos azimutes alarga a margem de manobra do PS. Enfim, para o prosseguimento daquela boa impressão que António Costa gostaria de ver Portugal continuar a dar, só o descalabro do CDS e a demissão de Assunção Cristas anunciam prováveis problemas. A entrada parlamentar do Chega, de André Ventura, poderia ser só um infeliz mas passageiro acontecimento. Porém, junto à crise grave do CDS, pode potenciar uma recomposição populista da direita portuguesa.