"Adeus, futuro": O bicho homem
Quando eu era miúda, os meus pais arrendavam uma casa durante o Verão - e eu, que fazia anos nas férias grandes (nesse tempo, só começava a cheirar a lápis e cadernos novos em Outubro), tinha direito a festa, mas não à presença das minhas amigas da escola. Para me compensar, a cozinheira chamava-me para escolher o peru que seria servido ao jantar de uma fila interminável de animais vivos que um senhor com um pau conduzia rua fora ao som de gluglus. O facto de eu saber que a seguir iam embebedar o bicho e torcer-lhe o pescoço (não que eu assistisse a tais manobras) era uma coisa em que pura e simplesmente não pensava.
Numa dessas casas alugadas "à época", como na altura se dizia, havia uma grande capoeira onde uma ninhada de pintainhos fez as minhas delícias certo Verão. A senhoria deixou-me então baptizar um deles e ser sua dona durante as férias e, nesses meses, o meu Zé tornou-se um franguinho branco e bem-parecido. Porém, quando no ano seguinte voltámos à casa e perguntei por ele, o silêncio dos adultos disse tudo: o pobre acabara provavelmente numa canja. Não derramei, mesmo assim, demasiadas lágrimas: sabia desde tenra idade que os homens se alimentam de outros animais.
Tirando as condições terríveis com que certas espécies são criadas, tratadas e transportadas - que obviamente condeno -, tenho para mim que bicho é bicho e gente é gente, mesmo quando o animal de estimação é o nosso ("Ai, parecia mesmo uma pessoa") ou quando dou o nome de José a um frango. Como tal, enerva-me um certo fundamentalismo na defesa dos direitos dos animais (já há quem reprove a leitura de Moby Dick, haja paciência...) quando os nossos mais velhos - aqueles que, segundo Steiner, "cometem o crime de viver demasiado" - são abandonados tantas vezes à sua sorte pelas próprias famílias que tratam bem cão e gato. Por isso, um dia destes arrebitei a orelha (à cão) quando, numa dessas impessoais praças da alimentação de um centro comercial (cada um tem o que merece), um jovem casal estudava, na mesa ao lado, o orçamento familiar, perguntando-se se poderia pagar um daycare (que interpretei apressadamente como "centro de dia") ao Amadeu, para que não passasse tanto tempo sozinho. Imaginei que esse Amadeu solitário fosse um tio-avô sem filhos, recém-viúvo, que precisasse urgentemente de cuidados e companhia; mas, ouvindo a conversa até ao fim, entendi que afinal se tratava de um cachorro mimado e choramingas que ia custar 200 euros mensais aos donos para ser passeado e posto a fazer chichi duas vezes por dia. Adeus, futuro.
Editora e escritora. Escreve de acordo com a antiga ortografia.