Brasil: eleições em tempos de cólera
"Não posso mais, é desesperador, é como falar com uma parede, quanta ignorância", diz Luísa, advogada e opositora de Jair Bolsonaro (PSL), para um grupo de amigos, ao sair a chorar, de mão dada com a filha Julia, de uma reunião familiar em que brigou com os pais e avós de Julia, adeptos do candidato de extrema-direita do PSL.
"Nas últimas semanas acho que perdi umas 40 amizades, mas talvez não fossem sequer amizades", diz Gabriel, vendedor que vem rompendo nas redes sociais com quem o insulta por votar Bolsonaro. "Deixei de ir a churrascos e outros eventos com amigos porque sou o único petista [simpatizante do PT] do grupo, é muito bullying", prossegue Alberto, jornalista.
Ida é filha de um torturado na ditadura. Márcio, filho de um militar. Ela, de esquerda, vota Fernando Haddad (PT). Ele, de direita, vota Jair Bolsonaro. Os dois são casados. Como resolver? "A solução é não falar em política, mas de vez em quando soltamos umas indiretas e a coisa não anda muito bem, não", diz Ida. Isso no casamento, porque no capítulo das amizades ela vem cortando mesmo relações. "Ou, pelo menos, dando umas "dormidas" no Facebook para não entrar em discussões mais sérias, e não é de hoje, é desde o impeachment de Dilma."
Daniel, farmacêutico de profissão, vota Bolsonaro. "Vontade de brigar e de bloquear pessoas não me falta, mas ainda não fiz isso, a minha sogra sim, bloqueou todos os amigos do PT, acho desagradável, não devíamos chegar a esse ponto."
"Tenho uma tia adorável, católica fervorosa, num destes dias escrevi #EleNão nas redes sociais e gerei rebuliço e a discussão prosseguiu no WhatsApp, onde disse que Bolsonaro, machista, homofóbico e sem plano de governo coerente, não me representava. Ela disse que como era dia de Santa Terezinha ia rezar por mim", conta Fernanda, jornalista. "Eu respondi que era triste ela envolver uma santa tão fofa com um demónio e que quem iria rezar por ela era eu, acabei por bloqueá-la e não atendi quatro telefonemas dela desde então."
Os filhos de Maria Laura adoram o pai dela e avô deles, mas desde o início da campanha não o veem. "Porque vai dar briga e a tendência é para piorar." Enzo, publicitário, e a mãe bloquearam-se no WhatsApp.
O Brasil, que já está dividido, deve dividir-se ainda mais a partir deste domingo, quando Bolsonaro e Haddad, representantes de dois polos que despertam ódios e paixões, a extrema-direita e o PT de Lula da Silva, forem confirmados, ao que tudo indica, na segunda volta.
E da divisão entre famílias à violência entre desconhecidos vai um passo. No dia 6 de setembro, Bolsonaro sofreu uma facada com gravidade no abdómen durante um evento eleitoral em Juiz de Fora, Minas Gerais, de um opositor furioso.
A 27 de março, a caravana em que Lula fazia campanha em Quedas de Iguaçu, Rio Grande do Sul, foi atingida por dois tiros de calibre 32, num ataque que foi premeditado, segundo informações da própria polícia.
Num país em que a banda sonora atual é o coro "comunistas, comunistas", de um lado, e "fascistas, fascistas", do outro, os especialistas não têm dúvidas: a temperatura vai subir e os confrontos físicos são iminentes.
"Tenho na memória a campanha de 2014, que já foi muito agressiva durante os tempos de antena do PT contra Marina Silva, então no PSB, na primeira volta, e depois na segunda, de Aécio Neves, do PSDB, contra Dilma Rousseff e vice-versa", lembra Alberto Carlos Almeida, cientista político e autor do bestsellerA Cabeça do Brasileiro. "O que eu acho que difere agora, em que já houve ataques a candidatos e ameaças de morte, é que é muito provável confrontos físicos, tenho medo das ruas, de uma nova modalidade da agressividade", refere o mesmo responsável.
"Se se confirmar um duelo entre Bolsonaro e Haddad na segunda volta, a campanha, de dia 8 [amanhã] até dia 28 [data da segunda volta], será muito agressiva - petismo contra antipetismo, Bolsonaro contra #EleNão - e a temperatura vai aumentar e muito", avisa, por seu lado, Paulo Baía, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Polarização e duelos acalorados fazem parte de todas as segundas voltas no Brasil e em todo o mundo, mas com dois polos a despertar tanta paixão e tanto ódio, como é o caso do PT (de Lula e de Haddad) e de Bolsonaro, é um dado novo", disse na TV Bandeirantes o colunista Eduardo Oinegue.
Em editorial, o jornal conservador O Estado de S. Paulo alertou para os perigos do "dia seguinte". "Viceja o discurso sectário, a negação do diálogo para a construção de um compromisso nacional, mas passada a eleição deve prevalecer um espírito de boa vontade entre todos os cidadãos, governantes e governados, para que as dissensões não deem início a outra crise, esta de consequências imprevisíveis".
O editorial surgiu dias depois de Bolsonaro, ainda na cama do hospital, ter concedido uma entrevista ao magazine de crime da TV Bandeirantes Brasil Urgente, em que dizia não aceitar nenhum resultado além da sua vitória. "Pelo que vejo nas ruas, não aceito um resultado diferente que não seja a minha eleição", afirmou. Em causa, a falta de confiança no sistema de urnas eletrónicas que o país utiliza: "Não vejo isso em mais parte nenhuma do mundo, no Brasil não confiamos em nada, estou desconfiando de alguns profissionais dentro do Tribunal Superior Eleitoral, o PT só ganhará se houver fraude."
O colunista do jornal Folha de S. Paulo Celso Rocha de Barros não tem dúvidas de que "o bolsonarismo prepara um golpe". "Em entrevista recente", prossegue o colunista, "Hamilton Mourão [general que é candidato a vice-presidente de Bolsonaro] defendeu que o presidente da República tem o direito de dar um autogolpe se perceber que há uma situação de anarquia". "O mesmo Mourão que defendeu que se faça uma nova Constituição, sem esse detalhe de envolver gente eleita pela população, a nova Constituição, disse ele, deve ser feita por uma comissão de notáveis, uns puxa-sacos." Para rematar: "Se quer votar Bolsonaro, aproveite, pois será o seu último voto em muitos anos."
Outros setores não estão, no entanto, apenas preocupados com o eventual défice democrático do campo de Bolsonaro. Acreditam que o PT, movido pelo revanchismo pós-impeachment de Dilma, possa ter atitudes de força, baseando-se numa entrevista de José Dirceu, histórico dirigente do partido condenado no mensalão e no petrolão, ao jornal El País edição Brasil.
"O PT ganhar a eleição e não chegar ao poder? Na comunidade internacional isso não seria aceite e dentro do país seria uma questão de tempo para nós tomarmos o poder, o que é diferente de ganhar uma eleição."
Mas ao contrário de Bolsonaro, que ao longo da carreira política disse que fuzilaria o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, defendeu a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, lamentou não se ter matado mais gente no período militar, no Brasil, e quis elevar o torturador Brilhante Ustra a herói nacional, no Congresso, Haddad é considerado um moderado.
"Vamos fazer um acerto de contas sem revanchismo, sem ódio, queremos que o povo brasileiro mande no Brasil", vem dizendo o sucessor de Lula da Silva, que está preso em Curitiba e não pôde ser candidato a estas presidenciais - acalorando todo um outro debate em torno da sua libertação e dos seus direitos políticos.
No entanto, nos debates, os outros candidatos, à procura de um lugar na segunda volta, não se cansam de chamar "radical" a Haddad, colocando-o na posição de reverso de Bolsonaro.
"Nem os radicais de esquerda nem os radicais de direita, metade da população não quer nem um nem outro, eles são os dois com maior rejeição", disse Geraldo Alckmin (PSDB).
"Você, Haddad, é um democrata de longa data, mas está encarregado de fazer uma vingança", afirmou Ciro Gomes (PDT). "O país não aguenta mais essa radicalização, não votem pelo medo, votem pela esperança", defendeu Marina Silva (Rede).
Para a advogada Luiza, que chora quando fala de política com os pais, o problema não é o hoje. "É o amanhã! Como vamos voltar a encarar-nos se o Bolsonaro perde ou se o Bolsonaro ganha?" "Não é assim que começam as guerras civis?", questiona. A pergunta fica no ar.