Do outro lado do espelho

Publicado a
Atualizado a

Uma em cada quatro mulheres até aos 19 anos admite ter sido vítima de atos de violência por parte do parceiro. No ano passado, PSP e GNR registaram 3320 denúncias de crimes de violência no namoro e num terço dos casos as vítimas - maioritariamente mulheres, mas também homens - tinham menos de 24 anos. Nesse período, 23 pessoas morreram em Portugal às mãos daqueles com quem partilhavam a vida, daqueles que as deviam proteger. O número mais negro inclui duas crianças e cinco homens.

Este retrato rápido deve motivar preocupação social. Cada ato de violência, ainda mais quando praticado dentro de casa por agressores que são as mais próximas relações daqueles de quem fazem vítimas, é sinal de algo podre na comunidade. E mesmo que os números revelem algum abrandamento - em 2020 foram 32 as mortes -, os registos são demasiado altos para não causar preocupação. Mesmo porque só falam dos atos praticados entre quatro paredes e que chegam a ser denunciados. Mesmo que por terceiros: foram sete mil num ano.

A verdade é que este é um crime demasiadas vezes silencioso. Por vergonha ou por medo, muitas vítimas não chegam a fazer-se ouvir até ser demasiado tarde; e ainda são poucos os que consideram ser seu dever denunciar situações de que têm conhecimento se nelas não tiverem envolvimento. E muitos atos de violência ficam por denunciar - desvalorizados como mera irritação ou confundidos com reflexos de paixão - ou castigar, também fruto de pequenas vinganças de quem, sem escrúpulos ou noção do estrago que causa, atira acusações falsas contra quem quer magoar. Tantas vezes gritam lobo que quando a ameaça é real não há quem a valorize.

A violência, doméstica ou fora de casa, física ou verbal ou psicológica, é um problema real, grave e sintomático de uma sociedade doente. E estes dois anos de pandemia não ajudaram, antes tornaram muitas pessoas cegas aos graus de cinzento que separam o branco do preto, radicalizando posições e partindo para ataques viscerais por razões absurdas.

O isolamento, o medo de ser contagiado por um vírus desconhecido, a rejeição de qualquer relacionamento por razão de sobrevivência, roubou-nos humanidade, levou-nos o sentido de pertença e a capacidade de reconhecer nos outros aquilo que vemos ao espelho. E quando deixamos de ver algo de nós nos outros, facilmente passamos a olhar os que estão do outro lado com desconfiança. Daí à agressão é um impulso, um momento, uma má interpretação.

Este fenómeno é bem visível nos comentários que se leem pelas redes sociais. Não é preciso chegar a produzir golpes e cicatrizes para se agredir, para manipular e insultar, para espalhar o ódio primário. Mas culpar as redes sociais por esse fenómeno é como banir os carros para acabar com os acidentes de viação. O problema está em nós, em cada um de nós. E é urgente que se diagnostique, acompanhe e trate antes que se materialize num crescendo de violência física. Doméstica ou não. Portugal precisa de um plano de saúde mental.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt