"Portugal é o sítio certo para mim. Um país onde as sementes da governação são também as da arte e cultura"
Na primeira entrevista desde que chegou a Lisboa, em abril, a nova embaixadora dos EUA, Randi Charno Levine, destaca a cooperação entre portugueses e americanos nas Lajes, que visitou há dias, e diz-se surpreendida por o seu interesse nas artes espantar os portugueses. A filantropa vê profundas divisões na América, mas acredita que o presidente, Joe Biden, é o homem certo na hora certa.

© Gerardo Santos / Global Imagens
Voltou há pouco dos Açores. Como foi a visita a estas ilhas, tão importantes para a relação entre os Estados Unidos e Portugal?
As ilhas são espantosas. São tão bonitas, acho que são um dos segredos melhor guardados de Portugal mas que cada vez mais pessoas começam a descobrir. Fazem-me lembrar o Havai, onde passámos a nossa lua de mel. A viagem foi fantástica para mim de várias formas. A primeira é que uma das principais ligações entre os EUA e Portugal é a açoriana, sobre a qual tenho aprendido cada vez mais desde que cheguei. Eu sabia dessa ligação, mas, vinda de Nova Iorque, a comunidade lá é principalmente constituída por portugueses do continente. Para mim era uma prioridade ir à Terceira e visitar as [a base] Lajes nas primeiras semanas. Queria ir antes de voltar a Washington para o encontro da comissão bilateral permanente. E tenho de destacar uma coisa que muitas vezes se perde no meio do barulho, que é a camaradagem incrível e a integração entre o pessoal da Força Aérea americana e da portuguesa. É evidente na torre de controlo, onde quem entra os vê a trabalhar lado a lado sem conseguir dizer quem é quem. Fiquei deveras impressionada. Encontrei-me com o líder da Força Aérea portuguesa e ele não podia ter sido mais enfático a dizer o quão importante é a cooperação entre portugueses e americanos. Também me encontrei com vários presidentes [do governo regional]: o atual, o anterior e o antes desse. E com o presidente da Câmara de Ponta Delgada [Pedro Nascimento Cabral], que nos fez uma surpresa e nos levou a visitar uma sinagoga do século XVIII que mostra a história e as raízes dos judeus nos Açores, muitos vindos de Marrocos e Argélia. A sinagoga não está a funcionar, não há uma congregação, mas foi muito significativo para mim e para o meu marido, sobretudo devido ao nosso background. A visita foi um sucesso e manter este diálogo aberto vai continuar a ser uma prioridade para mim.
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Vinda de Nova Iorque, não tem a experiência da comunidade portuguesa como se tem na Califórnia ou Massachusetts...
Bem, na verdade não é bem assim. Tive um professor de Português que era do Ironbound [bairro de New Jersey onde vive uma forte comunidade portuguesa]. É professor de línguas e treinador de futebol, claro (risos) - e apresentou-me ao Ironbound. Fui visitar o bairro com ele. Nessa visita aconteceu uma coisa muito engraçada. Quando fui ao Ironbound conhecer o meu professor, entrei na padaria e estava a comprar o meu pastel de nata quando de repente estava toda a gente a olhar para mim e a apontar. Achei tão estranho. Mas aconteceu que o Luso-American Journal desse dia tinha a minha fotografia na primeira página com a notícia de que ia ser embaixadora em Lisboa. Ainda por cima eles dão o jornal na padaria! Costumo dizer que foi o "fado" - significa "destino", não é? Por isso tenho alguma relação com a comunidade portuguesa. Mas não é uma comunidade açoriana, essa é a diferença.
Chegou a Lisboa em meados de abril; o que sabia de Portugal?
Já cá tinha estado. Durante as minhas viagens de estudo das artes passámos aqui quase duas semanas. Reunimo-nos com artistas, galeristas, instituições. Fomos à Gulbenkian, a Serralves. No Porto também me reuni com importadores de vinhos, o que voltei a fazer na minha última visita àquela cidade. As pessoas esquecem-se que vinho é agricultura e a ligação agrícola é muito importante, por exemplo, entre Napa Valley, Califórnia, onde tenho muitos conhecimentos, e Portugal. E espero fomentar um programa de intercâmbio nessa área.
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Quando foi essa primeira visita a Portugal?
Foi em 2018. E apaixonei-me por Portugal. Senti uma extraordinária afinidade com o país e sinto-me extraordinariamente sortuda por ter sido escolhida como embaixadora em Portugal. É o sítio certo para mim. Queria um país onde as sementes da governação fossem também as sementes da arte e da cultura, onde eu pudesse ser mais eficiente. Queria um sítio na Europa Ocidental, onde o meu marido, que é empresário, pudesse andar para lá e para cá. Aqui senti-me muito ligada às pessoas, à cultura. Os portugueses são muito ligados à família e nós também somos muito focados na família. A minha vem cá visitar-me no final de junho. Talvez isso explique a minha empatia com o povo português. É muito interessante, porque muitas pessoas - do governo como da sociedade civil - vêm ter comigo e dizem: "Nem queremos acreditar que temos uma embaixadora dos EUA que se interessa tanto pelas artes e pela cultura."

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O que mais a surpreendeu nestas primeiras semanas em Portugal?
Foi isso, que as pessoas ficassem surpreendidas por eu me interessar pelas artes e pela cultura. Porque penso na América como um país muito avançado e interessado nessa área. E se não somos, então é minha tarefa garantir que vamos fomentar essas relações pessoais em torno de assuntos que são importantes para os portugueses e para os americanos. Sejam artistas, gente do entretenimento, do desporto ou dos negócios. Para discutir os nossos interesses comuns - tal como as energias verdes, o ambiente. Resumindo, o que me surpreendeu mais foi que as pessoas ficassem tão surpreendidas comigo [risos].
Como soube que ia ser embaixadora em Lisboa? Qual foi a sua reação?
Inicialmente, somos avisados pelos conselheiros da Casa Branca de que fomos escolhidos para representar o nosso país num determinado sítio - no meu caso, Portugal. Começa então um complexo processo de vetos e aprovação. Os EUA são muito cuidadosos na escolha dos candidatos. Quando recebi o telefonema oficial - esta é uma história engraçada - estava a tomar conta dos meus netos, tinha um em cada braço. Foi um momento maravilhoso. Quando soube que tinha sido confirmada pelo Senado, por acaso estava com amigos que têm casa em Lisboa e que me estavam a explicar algumas coisas, por isso foi uma boa forma de celebrar.
A embaixadora e o seu marido foram doadores para a campanha presidencial de Joe Biden. Conhece-o bem?
Tenho uma ótima relação com o presidente Biden. Fui a casa dele para vários eventos quando ele era vice-presidente. Mas acho que o verdadeiro momento em que reatei a relação com ele - tenho uma foto desse momento ali - foi quando, como parte do meu trabalho na Smithsonian National Portrait Gallery, apresentámos os retratos dos Obama. Fizemos a recolha de fundos, apresentámo-los, criámos os eventos à volta das fotos. E isso mudou a forma como as pessoas pensavam quanto aos retratos oficiais dos presidentes, o que era o objetivo. Foi aí que nos reencontrámos. E tenho orgulho em dizer que fui a anfitriã do primeiro evento em Nova Iorque depois de Joe Biden ter oficializado a entrada na corrida para as primárias democratas, no início de julho 2019. Estamos com a equipa Biden desde o início. O presidente Biden veio a nossa casa e não podia ter sido mais simpático e agradecido. Estávamos mesmo no início do processo - e eram muitos candidatos. Mas sentimos desde o início que Joe Biden era o homem certo para a presidência naquele momento.
Quando pensamos na relação entre Portugal e os EUA, pensamos na Base das Lajes, na comunidade portuguesa, que data do século XIX, no vinho da Madeira... mas vai muito além disso. Qual a sua prioridade, enquanto embaixadora, para fomentar essas relações?
A minha prioridade e a minha experiência em diplomacia passa por criar ligações individuais, que têm feito muita falta, e acho que a diplomacia, as negociações, tudo se baseia nas relações entre as pessoas. Por isso tenciono trazer isso de volta em várias plataformas. Obviamente no diálogo sobre arte e cultura, mas também nos negócios, de forma a trazer mais prosperidade aos dois lados do Atlântico. E ainda no clima, energias verdes, tecnologia. Há tantos nómadas digitais hoje, mas há mais em Portugal do que na Califórnia. Enquanto embaixadora, não pude deixar de reparar no empenho do governo na paridade de género, e isso também envia uma mensagem às mulheres empresárias.

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Chegou a Lisboa quando Portugal e a Europa estavam muito focados na guerra na Ucrânia. Após alguns anos de tensão entre os EUA e a NATO, este conflito veio mostrar que a Aliança é mais importante do que nunca, mesmo para os EUA?
Sim. A NATO sempre foi importante para os EUA e acho que aprendemos que não podemos permitir que regimes autocráticos assumam o controlo das nossas infraestruturas críticas e setores sensíveis. Os EUA reconhecem isso, tal como a Europa, e a guerra na Ucrânia galvanizou-nos para apreciarmos a importância não só da nossa relação mas do sistema democrático e de comércio livre do qual passámos a depende, depois de tantos anos a desenvolvê-lo. Portugal, como fundador da NATO, é um aliado e parceiro de confiança. Em muitos encontros que tive com membros do governo, disseram-me que "o nosso maior problema é que não temos problemas", mas eu costumo dizer que temos os problemas do mundo. E agora todos partilhamos esse fardo.
Durante muitos anos os EUA foram-se virando cada vez mais para a Ásia, para o Pacífico. Com esta guerra, tiveram de voltar a olhar para a Europa?
Vivemos todos numa economia global. Esta questão da energia mostrou-nos que os dados podem mudar rapidamente e que quando algo acontece numa parte do mundo pode depressa afetar o outro lado. Fico feliz e orgulhosa de que os EUA tenham elevado a importância da parceria com a NATO - de volta ao que sempre deveria ter sido. E acho que o presidente Biden acredita nisso. Mas todos temos de nos envolver em várias frentes, como Portugal com os parceiros brasileiros ou africanos. Temos também de nos envolver com os nossos parceiros asiáticos, seja na promoção da democracia ou em formas de proteger essa democracia.
Em novembro os EUA têm eleições intercalares e o que vemos de fora é um país profundamente polarizado. Vimos isso no ataque ao Congresso, em janeiro de 2021, vemos isso agora na discussão sobre o aborto e até na reação aos tiroteios, que se têm multiplicado. Uma América diz "chega de armas", outra defende mais armas. É possível unir estas duas Américas, como o presidente Biden prometeu fazer?
Vivemos num mundo em que as mensagens passam sobretudo pelas redes sociais. E isso dá espaço a vozes que tradicionalmente não seriam amplificadas. Mas o povo americano falou quando elegeu Biden. Queria voltar ao centro, queria voltar a tomadas de decisão pensadas e responsáveis. Isto não significa que não haja polarização, mas essa também existe aqui em Portugal. Mas é com grande pena que oiço a forma como alguns políticos americanos falam da tragédia em Uvalde (tiroteio numa escola desta cidade do Texas) ou das outras que se lhe seguiram em poucos dias. E quero acreditar na humanidade do povo americano. O presidente fez um discurso extraordinário, em que voltou a destacar as soluções que são do senso comum: a proibição deste tipo de armas, aumentar a idade em que é legal ter uma arma, reforçar a investigação ao passado dos compradores. Já tivemos isso no passado, mas expirou, e acredito que chegou a hora de fazer alguma coisa.

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Unir a América é uma prioridade, como disse, mas parte da América nem sequer acredita no resultado das últimas presidenciais...
É verdade. Isso acontece em parte devido a algumas vozes minoritárias que falam muito alto. Estas pessoas capitalizam a forma como os media funcionam hoje em dia, o facto de estarem acessíveis a todos, para manipular as suas mensagens e amplificá-las. Mas espero e acredito que a maioria dos americanos acredita nos resultados das eleições e que vai continuar a votar e a depositar a sua confiança no sistema americano. Nenhum sistema é perfeito, mas como permitimos este diálogo aberto, discussões e debates iremos ouvir o que cada lado tem a dizer.
Como mulher, como vê a eleição de Kamala Harris como vice-presidente? Acha que os EUA estão finalmente prontos para pôr uma mulher na presidência?
A vice-presidente Harris é uma mulher extraordinária. Trabalhou connosco numa das nossas iniciativas - Artistas por Biden - e está muito envolvida com as artes. É inspiradora e maravilhosa. Se os EUA estão prontos para ter uma presidente? Acho que sim. Não sei se a derrota de Hillary Clinton teve necessariamente a ver com o facto de ser mulher. Eram tempos complicados e ela enfrentava um candidato tudo menos convencional. E tal como elogiei o vosso governo por se preocupar com a paridade, elogio Joe Biden por fazer o mesmo e procurar também a igualdade. Ele é casado com a primeira primeira-dama que continua a trabalhar . Tem filhas e netas e tenho muito orgulho no que ele faz. E em poder representar o meu país aqui.
helena.r.tecedeiro@dn.pt