De repente, algo mudou em Davos, a conferência em que os ricos e poderosos deste mundo procuram ter voz. Em primeiro lugar e por circunstâncias diversas, faltaram alguns dos principais líderes mundiais. Em segundo lugar, foi dado palco ao novo presidente brasileiro que nada disse e cujo ministro da Economia, amigo de Davos, continuou desconhecido como dantes. Por fim e mais importante, falou-se de empresas e mudanças climáticas, de empresas e filantropia, de empresas e sociedade, mas o que mais sobressaiu foi o desgaste dessa conversa. Ao contrário, o que teve êxito foi tudo o que foi dito sobre taxar os mais ricos. Nada disto é por acaso. Vejamos então em que ponto estamos - com Portugal em pano de fundo..Depois de uma longa década de impasse em soluções governativas, ganhou força, algures nos anos 1980, a convicção de que era preciso desregular a economia e "desagravar" impostos. Assim foi feito e em quase todo o mundo industrializado foram reduzidas as barreiras aos movimentos de capitais e de produtos (não tanto de pessoas) e baixados os impostos sobre os rendimentos mais altos, do trabalho e do capital. Esta tendência desagravadora traduz-se em três nomes que dizem quase tudo, Thatcher, Reagen e Cavaco. Entretanto, não sabemos bem por que razão, largos extractos dos eleitorados compraram a ideia e ela acabou espelhada, embora de forma menos radical, por nomes como Clinton, Blair ou Guterres. Nada de mal nisto tudo, pois o mundo então tinha de mudar e mudou..Mas foi-se longe demais. A prova de que se foi longe demais está no facto simples e irrefutável de que, nas décadas que se seguiram, as desigualdades sociais nos países industrializados subiram exponencialmente. Há várias manifestações disso mesmo, dos dados sobre quantos detêm o quanto da riqueza nacional ou mundial, aos que mostram que os salários no mundo industrializado não conseguem acompanhar os ganhos de produtividade associados. Isto não é marxismo, é economia e da mais banal..A desigualdade é um problema sobretudo social, mas tem repercussões politicas e económicas. Não é fácil demonstrar essas repercussões e muitos pegam por aí para dizer que tudo não passa de invenção. Mas, às vezes, para comprovar, basta pensar..Vejamos. A descida das barreiras ao comércio e capitais levou a um maior nível de integração da economia mundial, a uma maior globalização. Disto não há dúvidas. Ora, assim, qualquer industrial ou produtor de serviços (ou bens agrícolas), em qualquer parte do mundo, tem acesso aos trabalhadores com salários mais baixos em qualquer lado em que estes se encontrem. E isto acontece, de facto, mesmo tendo em conta (continue-se, mesmo que pareça difícil de entender, porque não é) as diferenças de produtividade entre trabalhadores das várias partes do mundo, os custos de transporte, ou os riscos cambiais e outros..Desta forma, os resultados só podem ser dois: os industriais ou levam a produção para os sítios onde os salários são mais baixos, ou oferecem salários mais baixos nas suas próprias terras - as tais terras ricas, industrializadas e prósperas, cada vez mais só para alguns. É isso que se quer, um nivelamento por baixo dos salários? A resposta não precisa de teoremas, modelos ou demonstrações exotéricas..Mas há mais, sem regulação internacional, num contexto de crescimento avançado e por isso moderado, quem tem capital ganha sempre mais cada ano (ganha o juro) do que quem tem salário (que ganha a inflação e pouco mais). Esta ideia já fez alguém vender algumas centenas de milhares de livros e é correcta..Tudo isto está identificado, tudo isto é teoricamente simples, mas será tudo isto fado? Até aqui, os discípulos das ideias com mais de 40 anos (Cavaco, etc.) têm conseguido convencer de que nada há a fazer, que o que tem de ser muita força tem e que os ganhos desta globalização são insofismavelmente superiores às perdas. Cameron ganhou eleições com essa ideia, o Brexit vem dessa ideia, Trump adora essa ideia, assim como o suposto grande ministro das Finanças de Bolsonaro. Por cá, nesta que foi uma desgraçada terra de experimentalismo durante quatro anos, Passos, os amigos dos funcionários do FMI que nos calharam, e respectivos herdeiros ainda confiam nela..Pois, a notícia é que, em Davos, deu-se um princípio para o fim da ideia de que nada há a fazer. Em Davos e no novo Congresso dos Estados Unidos. Não sabemos se taxar os ricos em 70% é a solução, mas sabemos que é necessário começar a pensar numa solução para salvar a globalização e o capitalismo. Vamos a ela..Professor universitário e investigador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.