Meu menino lindo
No dia 13 de Setembro de 1690, Frei Mathias de Mattos, religioso professo da Ordem de São Jerónimo, 40 anos, sacerdote e pregador, morador no Convento de Belém, pediu audiência à Mesa do Santo Ofício. Confessou aos inquisidores que, na Quaresma desse ano, conhecera um jovem corista, Frei Francisco da Ilha da Madeira, que também morava naquele convento e que lhe enviara algumas cartas "cheias de palavras amorosas". Frei Mathias vinha agora contar como tudo se passara e entregar à Inquisição as cartas do seu amante. As seis missivas de Frei Francisco, hoje arquivadas na Torre do Tombo, são um exemplo raríssimo de correspondência homossexual seiscentista; a par delas, existe apenas, ao que se sabe, um conjunto de cinco cartas, datadas de 1664, escritas por um sacristão do Algarve ao seu amante, segundo nos informa o académico e activista brasileiro Luiz Mott no estudo "Meu menino lindo: Cartas de amor de um frade sodomita (1690)", republicado por Harold Johnson e Francis A. Dutra num livro muito interessante, Pelo Vaso Traseiro. Sodomy and Sodomites in Luso-Brazilian History (2007).
Frei Mathias reconheceu ter estado várias vezes com Frei Francisco, ora na sua cela, ora na cela dele, ora noutros lugares ocultos do convento, "cometendo um com o outro vários actos de molície consumados". Tanto era Frei Mathias que assumia o papel activo como o contrário, mas tinham sempre o cuidado de não ejacular no interior do ânus do parceiro, já que sabiam que o "nefando pecado de sodomia" só era castigado na particularíssima circunstância de haver derramamento de sémen (da "semente") no "vaso traseiro" dos envolvidos. A Inquisição, de resto, apenas perseguia esses específicos actos de sodomia. Na verdade, e contrariamente ao que sucedia em Espanha, o nosso Santo Ofício só se interessava pela chamada "sodomia perfeita", com emissão de esperma no ânus, não se ocupando dos pecados de bestialismo e "molície", os quais incluíam todas as práticas não dirigidas à cópula anal, como a masturbação recíproca (molicie ad invicem ou "fazer as sacanas"), o sexo oral (fellatio), o coito interfemoral ("coxeta"), etc. A partir de 1646, o lesbianismo (sodomia foeminarum) passou a ser descriminalizado e, apesar de os padres do Santo Ofício continuarem a investigar a "sodomia imperfeita" (connatus), isto é, o sexo anal heterossexual, rarearam as condenações por este crime.
As Ordenações Afonsinas invocavam o episódio bíblico de Sodoma e Gomorra para justificar a aplicação aos sodomitas da mais grave das penas, a morte pela fogueira até o cadáver ficar reduzido a cinzas, por forma a que não restasse memória nem vestígio daquele corpo nefando.
Acrescentaram as Ordenações Manuelinas uma pena suplementar, e muito relevante: os bens do condenado seriam confiscados pela Coroa, mesmo que aquele tivesse descendentes, e os seus filhos e netos seriam declarados infames e inabilitados a governar os seus haveres. Introduziu-se ainda uma nuance que incentivava as maiores perversidades: quem denunciasse um acto comprovado de sodomia receberia como recompensa um terço dos bens do condenado ou, caso este não tivesse bens, um prémio de 50 cruzados concedido pela Coroa.
Nas Ordenações Filipinas - que, nesse ponto, não inovaram face à legislação anterior -, a sodomia era equiparada a crime de lesa-majestade e traição, sendo punida com a severidade adequada: auto-de-fé, açoites até ao derramamento de sangue, confisco de bens, degredo ou fogueira, dependendo da gravidade do acto e da contumácia do acusado. No entanto, só uma ínfima minoria dos acusados era mesmo castigada.
Luiz Mott e outros investigadores ficam surpreendidos com o facto de existirem poucos ou nenhuns registos de condenações, o que pode atribuir-se ao facto de esses registos serem porventura destruídos para todo o sempre, à semelhança do que acontecia com o corpo dos condenados, ou à circunstância mais provável de a legislação homofóbica não passar de letra morta e as graves penas nela previstas não serem aplicadas na prática. Mesmo no século XVII - aquele em que a perseguição foi, de longe, a mais intensa da nossa história - as condenações são escassas: de 1587 a 1794, os Repertórios do Nefando (um nome eloquente...), averbam um total de 4410 pessoas denunciadas ou que confessaram um qualquer envolvimento com a sodomia, mas, destas, só 394 chegaram efectivamente a ser presas e processadas, o que perfaz uns 8,9% da totalidade dos registos.
Nos dois primeiros Regimentos da Inquisição, de 1552 e 1572, nem sequer havia referência à sodomia, a qual só passou a ser criminalizada pelo Santo Ofício em 1613, através do Regimento de D. Pedro de Castilho, um inquisidor conhecido por ser implacável na perseguição aos chamados "fanchonos". Talvez por influência da Inquisição espanhola, o século XVII foi, como se disse, aquele que registou maior perseguição homofóbica, com um total de 278 prisões, mais do dobro das 93 do século XVI e muito mais do que as 23 do século XVIII. Com 230 processos de sodomitas, a Inquisição de Lisboa tinha o maior volume de trabalho, comparando com os 27 casos registados em Coimbra e as 21 detenções efectuadas em Évora. Mas, durante toda a história da Inquisição portuguesa, terão sido executados, no máximo, 25 ou 26 homossexuais, o que, sendo sempre muito, é um número mínimo em comparação com as 300 prisões e 70 execuções ocorridas na Holanda calvinista em apenas dois anos, entre 1730 e 1732.
Os Regimentos do Santo Ofício favoreciam a delação e a denúncia e, acima de tudo, a confissão: se o sodomita, mesmo se muito devasso, tivesse a iniciativa de confessar-se, sem que anteriormente tivesse sido denunciado por algum cúmplice, deveria ser tratado com misericórdia e sofrer, quando muito, o degredo, jamais sendo entregue à justiça secular para a pena ordinária da fogueira.
Foi o que sucedeu com Frei Mathias de Mattos, que procurou salvar a pele confessando o seu crime e, pior do que isso, denunciando o amante e entregando as suas cartas na Mesa do Santo Ofício. As cartas de Frei Francisco podem parecer ridículas, como todas as demais cartas de amor, mas, além do seu extraordinário valor histórico, mostram aos mais incautos que o amor homossexual é tão amoroso e poderoso como os demais, até naquilo que o amor tem de risível e caricato ou, para sermos benevolentes, de apaixonado e insano.
Frei Francisco trata Frei Mathias por "meu menino lindo", "meu feitiçozinho, meu cãozinho", fala do "teu lindo rostinho, da tua boquinha", onde desejava dar "um beijinho de língua". Confessa-se "estonteado" pela visão do amante, queixa-se de saudades e padecimentos de amor, pede ao seu "amorinho" ou "coraçãozinho" que lhe escreva (as cartas de Frei Mathias para Frei Francisco terão sido destruídas por este, pelo que apenas se conserva um dos lados da correspondência). Na sexta e última carta, o corista termina com "adeus, adeus, adeus" e não se sabe ao certo como tudo terá acabado.
Frei Francisco, do pouco que se conhece, era um jovem sacerdote e corista natural da ilha da Madeira, não via a mãe há seis anos e tinha um tio na Igreja de São Roque, ao Bairro Alto. De Frei Mathias, pregador famoso com registo na Biblioteca Lusitana, há mais notícias, sabendo-se que nasceu em Lisboa e foi dos primeiros congregados do Oratório de São Filipe de Néri, tendo depois passado para a Ordem dos Jerónimos, onde professou no Real Convento de Nossa Senhora de Belém no Dia de Natal de 1679, sendo mais tarde prior do Mosteiro da Pena e visitador-geral da Congregação. Pregou várias vezes na Capela Real, com muito aplauso dos presentes, e alguns dos seus sermões mais célebres, como o da quarta-feira da Quaresma de 1686, chegaram a ser impressos e publicados. Faleceu em Agosto de 1716.
O processo no Santo Ofício não parece ter abalado a sua carreira eclesiástica ou a vida pessoal, desconhecendo-se se, após tal juízo, terá abandonado ou não as práticas homoeróticas com outros sacerdotes. Segundo as investigações de Luiz Mott, um terço das prisões e execuções efectuadas pelo Santo Ofício tiveram por alvos alguns membros da Igreja - sacerdotes, frades, noviços, coristas, etc. -, o que levou a que, no Portugal antigo, se considerasse a homossexualidade um "vício de clérigos".
O romance entre Frei Mathias e Frei Francisco não foi, de modo algum, caso isolado, podendo citar-se outra situação ocorrida poucos anos antes, em 1682, e também no Mosteiro dos Jerónimos, em que o sacristão Manoel da Costa manteve repetidas relações homoeróticas com Frei Agostinho de Monte Sion, Frei Pedro Encarnação, Frei Francisco de São Jerónimo, Frei Gaspar dos Reis, Frei Vicente de Alamares, Frei Tomás de Barros, Frei António de Belém, Frei António de Campos, Frei Constantino e Frei Manoel Magalhães, havendo ainda registo de "outras fanchonices" com um colega sacristão e com o boticário do convento.
Ao contrário do que podem concluir os mais apressados, a Inquisição, como é bom de ver, não procurava reprimir a homossexualidade em si mesma. Desde logo, porque se interessava apenas pela "sodomia perfeita", deixando de fora da sua alçada os demais actos homoeróticos, incluindo o sexo sem emissão de sémen no ânus e até, ao que parece, o lesbianismo, para não falar do sexo anal heterossexual. O "crime nefando" só o era em circunstâncias muito específicas (e, de resto, assaz bizarras, pôr a "semente" no "vaso traseiro" do parceiro) e, mais decisivamente ainda, a confissão salvava o pecador dos castigos mais severos, o que fez, no final, que apenas uma ínfima parcela dos casos reportados (8,9%, para sermos precisos) resultasse em condenação efectiva. Não nos iludamos, porém, com esta aparente benevolência nem tenhamos a Inquisição por gay-friendly, pois o que tudo isto demonstra é que o Santo Ofício, mais do que perseguir o sexo não reprodutivo, utilizava o pecado da sodomia para aumentar o seu poder e para exercer a sua sinistra influência sobre certos grupos sociais (como, noutro plano, fez com os judeus e os cristãos-novos).
A frequência elevadíssima de casos detectados no seio do clero tanto pode significar que havia uma percentagem muito significativa de sacerdotes com inclinações homossexuais como pode ser produto de um controlo mais apertado e de maior vigilância sobre esse grupo, indiciando que a Inquisição se pretendeu afirmar aqui, e uma vez mais tomando a sodomia por mero pretexto, como a grande instância de controlo da Igreja e no interior da Igreja. O que estava em causa não era a homossexualidade em si mesma nem uma questão moral ou teológica, mas um problema político de poder e de influência, como se prova também pela selectividade social das sanções aplicadas, com aristocratas como o conde de Vila Franca ou D. Filipe de Moura a beneficiarem de um tratamento excepcionalmente brando, apesar de terem praticado centenas de actos homossexuais com dezenas de parceiros, alguns dos quais menores.
Para agravar as coisas, a delação era de tal forma premiada que, no final, quem confessasse os crimes e denunciasse os parceiros, como sucedeu com Frei Mathias, pouco ou nada sofria. O importante era delatar, delatar sempre, encontrar mais e mais acusados, para que se aumentasse incessantemente o poder voraz da Santa Inquisição. Não era por compaixão que o Santo Ofício perdoava aos que confessassem perante si os pecados que cometeram, era para garantir que outros mais iriam fazê-lo, dirigindo-se à sua Mesa em vez de a outras instâncias, civis ou religiosas, e, sobretudo, para impedir a intervenção da justiça secular, já que a entrada em cena desta última sempre implicaria, como é óbvio, uma perda do poder e da influência da Inquisição.
A confissão era considerada a "rainha das provas" e por isso se torturavam os arguidos barbaramente, até que estes chiassem o que fizeram e mesmo o que não fizeram, mas que era do agrado dos seus algozes. Além do mais, a Inquisição fazia um uso manipulatório do segredo, proibindo que se contassem as misérias corridas nos seus cárceres e tribunais, e sem que os arguidos soubessem sequer o nome dos acusadores e denunciantes. Tudo se resumia, sempre, a uma questão de influência e de poder, mesmo que esse poder se baseasse no pior dos pecados, no mais imoral e mais anticristão dos gestos: delatar antigos ou actuais amantes, macular a beleza do amor com a mancha infame da traição e da denúncia. Uma organização que assim procedia dificilmente pode ser considerada cristã.
Actualmente, e à semelhança do que ocorreu nos negros tempos inquisitoriais, a homofobia continua a ser usada como um instrumento de poder e influência política. Há poucos dias, 47 homens foram detidos numa rusga num hotel de Lagos, na Nigéria. Arriscam dez anos de prisão por demonstração pública de afecto a pessoas do mesmo sexo, nos termos das leis anti-homossexualidade promulgadas em 2014 pelo então presidente Goodluck Jonathan, uma personalidade próxima dos "superpastores" das igrejas evangélicas, cada vez mais populares e influentes no país. Segundo diversas organizações, muitas pessoas são presas na Nigéria com base em meras suposições sobre a sua orientação sexual e o objectivo derradeiro e verdadeiro das polícias é, quase sempre, extorquir subornos (uma vez mais, a homossexualidade como mero pretexto). Como há pouco assinalava uma reportagem do jornal Sol, num país fracturado por horríveis conflitos étnicos e religiosos e pela insurreição dos extremistas islâmicos do Boko Haram, a homofobia é dos poucos temas consensuais: nove em cada dez nigerianos são a favor da criminalização da homossexualidade. No Uganda ainda é pior, prevendo-se já hoje a pena de prisão para os gays e havendo projectos para a consagração legal, pasme-se, da pena de morte.
No Ocidente, continuamos a criticar, e bem, o discurso homofóbico de alguns sectores eclesiais mais grunhos, e é um facto que a Igreja Católica tem ainda um longo caminho a percorrer nesse domínio, de modo a ultrapassar muitos séculos de hegemonia, temporal e espiritual, que a fizeram perder de vista o essencial da mensagem evangélica e do magistério de Cristo (se pesquisarmos "homossexuais e Cristo" no Google o que aparece logo é uma entrada da Wikipédia sobre a Idade Média pois Jesus Cristo, lamento informar alguns espíritos, nunca disse uma só palavra sobre a homossexualidade).
Mas, enquanto continuamos concentrados a falar de uma instituição que, a bem ou a mal, talvez mais lentamente do que gostaríamos, está a fazer o seu percurso e a dar mostras de evolução e maior humanidade, de muitos pontos do globo recebemos sinais tremendos. O poder dos evangélicos e da sua agenda ultraconservadora não cessa de aumentar, em África e em muitos lugares, dominando actualmente a América de Donald Trump e o Brasil de Jair Bolsonaro. A par da China e da Rússia, os evangélicos são hoje a mais grave e poderosa ameaça aos valores do Ocidente e quem, à direita, não percebe isto e continua a louvar Trump ou Bolsonaro não percebe mesmo nada do mundo em que vive. África, por seu turno, sofre uma onda de homofobia e extremismo sem precedentes e quem à esquerda teima em não ver isto, por complacência ou sentimento de culpa pós-colonial (no fundo, uma nova forma de colonialismo intelectual), também não percebe nada do mundo onde vive.
Mais importante do que tudo, a questão da população. É a demografia, estúpido. Segundo algumas previsões, 25% de todos os bebés nascidos neste século XXI irão ver a luz num só país africano, a Nigéria da homofobia e da barbárie do Boko Haram. Com 200 milhões de habitantes (e estilhaçada em 250 grupos étnicos...), a Nigéria é o país mais populoso de África e o sétimo mais populoso do mundo, estimando-se que em 2050 venha a ser o terceiro país mais populoso, com 411 milhões de habitantes (atingindo 794 milhões por volta de 2100). E estamos a falar de um só país, sem contar com a explosão populacional nos outros Estados africanos.
Perante isto, e por muito que nos custe, a Europa acabou, irremediavelmente esmagada pela pressão demográfica e migratória do Sul, pelo poderio económico do Oriente e pela geopolítica do eixo do Pacífico. A Europa acabou, finito. Divirtam-se nas compras de Natal.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.