Aceleras

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Uma mudança de casa para uma zona rodeada de radares fez que as multas por excesso de velocidade se fossem acumulando, umas atrás das outras, umas em cima das outras; o carro sempre o mesmo, o condutor, presumivelmente eu, dado à morte das sanções estradais. Diz o código, algures, fiquei a saber, que se pode escolher a carta ou o curso. Ou se entrega a carta, quarenta e cinco dias no meu caso, ou se faz um curso sobre velocidade, dois sábados, das nove às cinco, na Prevenção Rodoviária Portuguesa.

Enganar e enrolar processos não é coisa que saiba ou queira fazer - as multas são para pagar - e, por isso, ponderadas as coisas, escolhi fazer o curso, sempre seriam dois sábados a trabalhar no portátil num anfiteatro qualquer enquanto alguém falava dos males da estrada enquadrado por um powerpoint mostrando corpos carbonizados em Seats Ibizas tuning a arder na A5. Seria também a minha primeira experiência de privação de liberdade imposta por lei, depois da escolaridade obrigatória, em que o Estado mandaria no meu corpo, mas nunca na minha alma, durante dezoito horas, e isso podia dar uma boa crónica para o DN. Saiu tudo ao contrário. Mal cheguei ao local do crime, neste caso vice-versa, uma pequena sala com doze cadeiras em U, e uma mesa com imagens de revistas cortadas, rapidamente percebi que tinha caído numa situação de alcoólicos anónimos, olá, eu sou o João, não dou mais de cento e vinte há dezoito meses. Há a sala dos da velocidade, onde eu estava, a do álcool, onde eu nunca estaria, e a do telemóvel, onde eu devia estar.

Três grupinhos de doze, cada um com o seu conjunto de pecados, cada sala a achar que quem devia ir preso era os da outra sala, contaram as formadoras. Por curiosidade, os do álcool normalmente argumentam que é mais grave a culpa dos da velocidade, porque têm o conta-quilómetros na frente e sabem perfeitamente que estão a infringir, e um tipo que bebeu umas cervejas não faz ideia do nível de álcool no sangue, portanto não está a violar uma norma que lhe está à frente dos olhos. Pois.

A primeira coisa que me correu mal foi a de perceber que naquele modelo de sala era impossível estar oito horas a despachar mails e a rever contratos. O Estado, o poder coercivo, as garras da lei, iam-me mesmo apanhar dezasseis horas, dois sábados que ninguém nunca me ia devolver. Os colegas de cela iam entrando, todos a medo, menos um que já lá tinha estado e sabia ao que ia.

Mas a coisa que me correu mesmo mal é que o curso da velocidade correu mesmo bem. A formadora, muito inteligente, conseguiu domar um conjunto heterogéneo de infratores pouco contentes por perderem dois sábados ali. É que aquilo é gente que gosta de andar depressa, obrigá-los a parar é contrariar a sua natureza, mas ela conseguiu e pôs-nos todos a pensar em porque andamos depressa. A maior parte daquela gente, eu incluído, estávamos ali por crimes de pilha-galinhas, dez, quinze quilómetros acima do limite, num radar qualquer escondido. Nas primeiras horas, a culpa era sempre de alguém, dos radares, da polícia, das estradas, do sistema, dos políticos, da caça à multa, do trabalho, da vida em geral e sobretudo da vida em especial.

De forma subtil, simpática, inteligente e eficaz, a formadora, habituada a tratar este tipo de hordas, lá foi fazendo cada um ver, nos seus tempos, nos seus contextos, que se calhar a culpa de andar depressa é mesmo de cada um de nós e de mais ninguém, e levou cada a fazer caminho para perceber as razões por detrás de cada excesso, de cada aceleradela. E depois é lidar com isso, com os nossos receios e anseios, com a ilusão de controlo, de que se pode chegar antes. Em poucas horas tudo partilhava coisas muito para lá do âmbito estradal ou mesmo rodoviário, o alheamento dos filhos, a pressão do trabalho, a tensão conjugal, a importância dos netos. Houve risos e lágrimas. Gente com quem partilhei momentos bons e inesperadamente intensos e construtivos, e uma bela cachupa no almoço do segundo sábado. Amigos para a vida que porventura nunca mais voltarei a ver.

O momento mais forte foi quando a formadora, como quem não quer a coisa mas quer, disse que no andar de baixo estava um grupo de gente como nós, que num dia como os outros tinha saído de casa, acelerou de mais e matou alguém, e que agora tem de viver com isso para o resto da vida, e que vidas são essas de quem tem de viver com isso para o resto da vida, e que muitas vezes foram poucos os quilómetros a mais. E só por isso já valeu a pena ter escolhido o curso, e pensar na pressa de ir a lado nenhum.

Advogado

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