A NATO e a China
Pela primeira vez na história da NATO, a China teve direito a uma breve referência no texto final na cimeira de Londres. Este foi, também, o mais curto da história dos conclaves da Aliança, com apenas nove parágrafos. Para termos uma ideia, Varsóvia (2016) produziu 139 parágrafos e a média das 11 cimeiras desde o cinquentenário em Washington (1999) é de 65. Pelo exemplo, parece mesmo que a NATO está focada no essencial e rigorosa na linguagem. Mas até nisto a doutrina se divide.
Como vimos pelas semanas que antecederam a reunião de Londres, não faltaram diagnósticos, prescrições, decretos, ideias, posições, contraposições, alarmes e prognósticos sobre o momento da NATO. A linguagem não foi meiga nem poupada. A realidade é esta: o consenso sobre a saúde e o futuro da NATO não é sólido entre os aliados. Nem está estabilizado depois de Londres. Já o foco, também merece reparos. Há quem a queira orientada para o terrorismo e quem veja a ameaça do revisionismo russo como a bússola que norteia a indispensável coesão de uma aliança. Há quem duvide da força do artigo V e quem se agarre a ele como único reduto da segurança coletiva. Quem esteja alarmado com o bullying de Washington e quem esteja furioso com o pré-anúncio de um estado de coma feito por Paris. Há quem se tenha manifestado para tentar baixar os decibéis e quem não tenha poupado nas palavras. Em resumo, a NATO está num debate vivo e polarizado como os tempos políticos que vivemos e enfrenta mais uma das suas recorrentes crises. Não é isto que é novo. A novidade é dupla: a administração americana não quer perder muito tempo com a Aliança e a China passou a estar no radar estratégico da NATO.
Nenhuma comunidade de segurança pluralista, para usar o conceito de Karl Deutsch, sobrevive ao fim de uma liderança assumida e aceite pelos demais. A NATO provou ser capaz de ultrapassar o fim de uma ameaça (União Soviética), reinventar-se e tornar-se útil no novo quadro geopolítico que se seguiu a 1989-1991. Desde a sua fundação até àquele momento, a NATO não disparou um só tiro. Em seguida, foi decisiva na reunificação alemã, nas guerras jugoslavas e na resposta ao 11 de Setembro, focando recursos no Afeganistão, e na normalização continental da Europa democrática. Não é a avaliação destes vários passos que quero hoje fazer, mas o facto de estes desafios terem sido enfrentados à vez, sem atropelos, dando tempo a que os aliados encontrassem consensos e adaptações, nacionais e coletivos. A ordem internacional do pós-guerra provou ser mais estável do que parecia, num quadro de validação do papel das organizações multilaterais e do alargamento geográfico das democracias. Tudo isto está hoje em causa.
O multilateralismo está sob uma tensão diária, com a emergência da competição aberta entre as grandes potências, sobretudo EUA e China. As organizações internacionais passam mesmo por uma fase de desprezo por parte de Washington, que esteve na origem da sua arquitetura e da sua durabilidade. E o modelo político chinês, por parecer acomodar um capitalismo de enriquecimento imparável, tornou-se um modelo disruptivo das democracias liberais, promovendo uma cultura centralizadora de homens-fortes à frente dos Estados, sem pejo em cortar liberdades, em nome de uma criação de riqueza selvagem e desigual. Se temos levado demasiado tempo a corrigir o nosso modelo económico, parece que estamos inebriados com uma alternativa ainda pior. O que é certo é que a China tem o mérito de ter recentrado novamente as atenções e afirmado um modelo de compatibilização entre o autoritarismo e a riqueza rápida.
Não há dúvida de que o equilíbrio com o modelo ocidental marca já a política internacional e promete impor-se, obrigando todos a ajustamentos rápidos, decisões firmes e concertações estáveis. Se a dificuldade em lidar conjuntamente com Pequim é evidente entre os europeus, em domínios como o digital, os direitos humanos, o comércio e a segurança, mais será se Washington assumir um posicionamento unilateral inamovível, desvalorizador da convergência com a Europa, instigador da fragmentação estratégica com uma agressividade narrativa imprevisível. Desde que Trump chegou à Casa Branca tem sido este o modelo. É certo que ainda nada se quebrou no elo transatlântico, mas nada está como dantes nem será como dantes, mesmo depois de o presidente americano abandonar funções. As feridas vão custar a sarar.
É precisamente por isto que os europeus devem ser um fator de preservação da estabilidade. A começar pelas organizações internacionais que lhe têm dado a força indispensável para enfrentar as várias dinâmicas da globalização, entre elas a NATO. Passando pelas reformas comunitárias necessárias para enfrentar as novas crises que mais cedo ou mais tarde surgirão. Investindo mais numa autonomia estratégica que vai da defesa ao digital, passando pela força diplomática, padrões comerciais e regulatórios, terminando na defesa da grelha de valores cosmopolitas que tem pautado a integração política das democracias. E, ainda, de se autovalorizar mais na relação com as grandes potências. Ser firme com uma Rússia em tantos aspetos em declínio, preservando canais de diálogo sem beneficiar, como muitos querem, um infrator que viola soberania de terceiros, manipula eleições no exterior e é implacável com dissidentes internos. Projetar dinâmicas de unidade comunitária perante uma administração Trump, oficialmente promotora da desintegração europeia e adepta do bilateralismo para melhor se impor. Paciência estratégica e afirmação de identidade é o fino equilíbrio para lidar com Washington.
E ser hábil com a China, o único dos membros permanentes do Conselho de Segurança com o qual a NATO não tem qualquer relação formal. Já defendi a espaços a criação de um Conselho NATO-China, como os que existem com outras nações com que a NATO tem de lidar em permanência. Seria uma forma de melhorar o conhecimento mútuo, monitorizar ambições, enquadrar ações, antecipar choques. A China é o país no mundo que mais investiu na defesa na última década, que tem mais presença diplomática global, tornou-se uma "potência europeia" capaz de projetar influência decisiva nas opções nacionais em setores como as infraestruturas, economia digital, direitos de autor, saúde, banca ou defesa. Fez recentemente exercícios militares no Mediterrâneo e no Báltico, testes militares conjuntos com os alemães sobre resposta a epidemias, e é fundamental no desenho de novos tratados sobre proliferação nuclear e gestão de crises regionais. É cada vez mais uma potência com influência no Atlântico Norte e no Atlântico Sul. Se a NATO não criar um fórum permanente de relacionamento ao mais alto nível com a China, vai passar ao lado dos eixos estruturais que já marcam a geopolítica global.
Investigador universitário